jmrainho 11/11/2023
A condição desumana
Autora, falecida em 1935, é uma referência sobre a banalidade do mal na condição humana. Atualíssimo. O exemplo hoje é do neofascismo, como da extrema direita que surgiu no Brasil dos esgotos, como uma pus que estoura na pele. Como vimos no julgamento dos criminosos do Holocausto, que negaram a autoria dos crimes e disseram que só cumpriram ordens, aqui no Brasil, os cúmplices do ex-presidente Bolsonaro, inclusive o próprio,
covardes e cagões, negaram o que fizeram em todas as mazelas na saúde, na economia, no discurso de ódio, da violência contra quem pensa diferente a eles.
Aqui ela fala também do trabalho como ums escravidão humana legalizada. Hoje, com a falácia da felicidade corporativa, pode ser analisado sobre a ótica da autora: o trabalho humano (homo faber) não se difere do trabalho animal, apesar de nossa superioridade mental. Nós, como os animais "trabalhamos" pra sobreviver. Rastejamos diariamente para cobrir metas dos capitalistas e ganhar as migalhas no fim do mês, ou atualizando a dinâmica, ganhamos nossos honorários de trabalho precário autônomo. Estamos apenas cumprindo a sobrevivência. Trabalhar para comer, vestir e dormir. Acordar e começar tudo de novo, num ciclo alienante. Não refletimos sobre o que fazemos diariamente. Só cumprimos ordens.
A vida, segundo Arendt, é um processo que em toda parte consome a durabilidade, desgasta-a e a faz desaparecer, até que finalmente a matéria morra. E só vive para consumir.
"O tempo excedente do animal laborans, jamais é empregado em algo que não seja o consumo". Apenas atende a suas necessidades, de acordo com sua renda. A famosa comilança, de que falava o brasileiro Lima Barreto.
Ela mostra toda essa involução desde o feudalismo. A propriedade privada, eterno bastão dos ratos endinheirados, resultou na tomada (roubo) da terra trabalhada pelo agricultor. Os camponeses foram convertidos em diaristas absorvidos na luta pela sobrevivência, matar um leão por dia.
No começo do livro ela reflete sobre o lançamento , em 1957, do primeiro satélite. Ela vislumbrou um desenvolvimento tecnológico inevitável, mas sabia que as massas não iriam ser convidadas para o banquete. Com essa dimensão geográfica de como é pequena a Terra, começou a se refletir que estamos huma prisão neste planeta. Uma prisão para a mente e para a alma, como disse Morfeu em Matrix.
A era moderna trouxe a glorificação do trabalho. Para os pobres, claro. E para a classe média ascendente, ávidas por ter semi-escravos fazendo o trabalho duro pra ela, em sua casa e nas empresas. Ao mesmo temo, temos agora uma sociedade de trabalhadores sem trabalho. Cada vez menos trabalhos. MAs eles ficam aguardando, no cadastro de reserva, no sonho capitalista realizado da reserva técnica de trabalhadores ociosos correndo para uma migalha precária. Ela lembra: homens são seres condicionados. Se acostumam com a exploração e nem se importam com isso, vide os pseudotrabalhadores uberizados. Eles não querem CLT., querem só trabalhar sem um patrão enchendo o saco em seu ouvido. Mas o patrão agora é outros, está oculto, e continua mandando. Eles só obedecem.
A saída para esse padrão é para os espertos. Só os melhores que provam ser melhores (não esta falando necessariamente de conhecimento, meritocracia, mas de esperteza), são valorizados pela sociedade, pela mídia, pelos pares, pelos clubes de serviço, pela fofoca da esquina. Até a religião virou a religião de quem ganha mais, esses são ajudados por um deus. Os fracassados são obras do diabo. Esses, segundo Arendt, vivem como animais.
Ser verdadeiramente livre, pra a Grécia de ouro, era não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Os capitalistas mudaram o último verbo da época de ouro da filosofia.
"A igualdade, portanto, antes de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade"
A sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários. E exigem dela proteção para manter a exploração, o acúmulo de riqueza, nas costas de outros. A revolução proletária não vai resolver isso, critica Arendt. Ela diz que Marx se enganou ao pensar no paraíso pós revolução proletária. Basta ver hoje um pobre assumir o poder político, ser vereador, deputado, síndico, pequeno empresário bem sucedido. Veja como ele se comporta. Só repete padrões que ante criticava.
Trabalhar sempre significou ser escravizado pela necessidade (na base da pirâmide, claro), e essa escravização, diz a autora, era inerente às condições da vida humana. MAs na antiguidade e na idade média a ascensão social e econômica não existia ou era rara, ou em alguns nichos de artesões. Agora é possível acender pela educação, herança ou esperteza. Até pelo roubo, criminoso ou institucionalizado como fazem os fraudadores de licitações.
Marx, ainda segundo a autora, não tinha a intenção de emancipar as classes trabalhadoras, mas de emancipar o homem do trabalho; somente quando o trabalho fosse abolido pode o "reino da liberdade" suplantar o "reino da necessidade". Pois o "reino da liberdade" começa somente onde cessa o trabalho imposto pela carência e pela utilidade exterior, onde termina o império das necessidades físicas imediatas.
A maldição que expulsou o homem e a mulher do paraíso, também os puniu com o trabalho .
O homem não pode ser livre se ignora estar sujeito à necessidade, uma vez que sua liberdade é sempre conquistada mediante tentativas, nunca inteiramente bem-sucedidas, de libertar-se da necessidade.
E 100 anos depois de Marx, com a tecnologia e sua pretensa produtividade, e a promessa falaciosa que daria mais tempo para o lazer do homem, vemos que o tempo excedente hoje do trabalhador jamais é empregado em algo que não seja o consumo banal. Quanto mais tempo disponível, e isso o trabalhador quase não tem, mais ávido para o consumo, para a comilança, para os programas alienantes da TV e da internet, para a cachaçada, para a putaria, para o descanso ocioso da para ver bundas e peitos.
E nas fábricas, ou em startups que usam inteligência artificial, os homens se tornam servos das máquinas que eles mesmo inventaram e são "adaptados" às suas exigências, ao invés de usá-las como instrumentos de satisfação de suas necessidades e carências humanas. Os homens, pergunta a autora, vivem e consomem para ter força para trabalhar ou trabalhar para ter os meios de consumo? vivem num circulo vicioso.
"Ao contrário das ferramentas da manufatura, que em cada momento dado no processo da obra permanecem servas da mão , as máquina exigem que o trabalhador as sirva, que ajuste o ritmo natural do seu corpo ao movimento mecânico delas [...]. Mesmo a mais sofisticada ferramenta permanece como serva, incapaz de guiar ou de substituir a mão. Mesmo a mais primitiva máquina guia o trabalho do nosso corpo até finalmente substituí-lo por completo".
ESPERANÇA
Dito tudo isso o que podemos fazer? Se conformar? Dar um tiro na cabeça? Lutar para ascender socialmente e se livrar dos esforços físicos, dos impostos e das dificuldades (ilusão)?
Hannah Arendt dedica um capítulo a Ação, a ação huma na transformadora. E essa solução, os pequenos messias, aparecem onde menos esperamos, esse é o grande medo dos canalhas exploradores. "O novo sempre acontece em oposição à esmagadora possibilidade das leis estatísticas e à sua probabilidade que, para todos os fins práticos e cotidianos, equivale à certeza; assim, o novo sempre aparece em forma de milagre. O fato do homem ser capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. E isso, mais uma vez, só é possível porque cada homem é único, de sorte que, a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo.
O rei-filósofo comandaria as cidades, na utopia grega, distorcida ontem e home pelos amantes do autoritarismo absolutista monárquico e das ditaduras. O supremo critério da competência de um homem para governar os outros é a capacidade de governar-se a si mesmo.
A história é produzida pelo homem, assim como a natsureza é produzida por Deus.
Mas o negacionismo moderno, terraplanista, bolsonarista, trumpista, é semelhante ao estoicismo, a troca do mundo real por um mundo imaginário, no qual esses outros simplesmente não existiriam. E o epicurismo repousa na ilusão da felicidade, enquanto se é assado vivo no Touro de Falera, uma imagem simbólica, ou as enganações da sociedade, que finge ser boa mas quer só usar subterfúgios "Para te comer melhor", na obra ficcional do argentino Eduardo Gudino Kieffer. O estoicismo repousa na ilusão de liberdade quando se é escravo. Mas todos, independentemente de sua classe social, são afetados pela dor e pelo prazer. A promessa de uma sociedade, das cidades, das nações, era do homem proteger o homem, contra as intempéries, contra a natureza. Isso foi esquecido.
É significativo que, como judia, que escapou do holocausto por pouco, Hannah fala em um capitulo da irreversibilidade e o poder de perdoar. Vejamos. "A redenção é possível para o constrangimento da irreversibilidade - da incapacidade de se desfazer o que se fez, embora não se soubesse nem se pudesse saber o que se fazia - é a faculdade de perdoar".
Se não fossemos perdoados, nossa capacidade de agir ficaria limitada. E serve para instaurar o futuro, que é por definição um Oceano de incertezas. "Se não fossemos perdoados, liberados das consequências daquilo que fizemos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos; seriamos para sempre as vítimas de suas consequências, semelhante ao aprendiz de feiticeiro, que não dispunha da fórmula mágica para desfazer o feitiço".
Deem tempo ao tempo. Nada acontece com mais frequência que o totalmente inesperado.
"Se o moderno egoísmo fosse, como pretende ser, a implacável busca de prazer (ao qual Bentham chama de felicidade), não careceria daquilo que, em todos os sistemas verdadeiros hedonistas, é um elemento indispensável à argumentação: uma radical justificação do suicidio. A vida é o bem supremo.