Ana Sá 30/09/2021
Lindamente triste, e com umas doidera no meio
"Não se nasce murakamer. Torna-se murakamer"...
... E eis-me aqui, toda murakamizada!
[Já aviso que, para falar do livro, vou falar de mim!]
De tudo que podemos dizer que une as duas histórias paralelas do romance, eu colocaria a solidão como um elo importante. O jovem Kafka, de um lado, e o idoso Nakata, de outro, duas personagens que estão em busca de si, mas que recorrentemente têm suas rotas desviadas para o contato com os outros, como que para perceberem que ser sozinho não significa ser solitário.
E daí surge o ponto que eu acho muito lindo na obra: o papel da gentileza e da generosidade das pessoas estranhas. Quem, como eu, já fez peregrinação ou bicigrinação por rotas como Caminho da Fé ou Santiago de Compostela vai ver ecoar algumas memórias de viagem ao ler este livro. Lembrei, por exemplo, de um senhor que parou sua caminhonete enquanto eu caminhava com minha mochila num sol de rachar, numa estrada de terra de MG, e gritou: "Peregrina, levanta a lona aí atrás, tem laranja e banana, pode pegar! Você precisa de água aí??.
Naquele momento, apesar de exausta, eu tinha a certeza de que comida e água não me faltavam. Mas paciência e ânimo sim, estes estavam se esgotando, pois o calor me consumia como nunca. E assim eu descobriria o quanto necessitava de um gesto de gentileza. O quanto a minha bagagem carecia de afeto. A parada atenciosa daquele senhor foi um sopro de vitalidade na minha caminhada. Daquele senhor e de tantos outros que olharam para o lado quando eu estava a cruzar seus caminhos.
Eu sempre acreditei que, mesmo sem percebermos, existe um lugar especial reservado a pessoas estranhas na nossa existência, sobretudo na existência daqueles que seguem sozinhos. Há como uma fresta nos encaixes dos nossos tijolos, que só é preenchida quando alguém de fora deita o olhar nas nossas fendas, sabe? E este livro me levou para o lugar desse eu que aguarda, sem nem saber, pelo reparo de alguém. E ninguém nunca sabe? A gente nunca sabe o que se passa na vida do outro, nunca conhecemos o outro por completo, por isso há anos eu penso que, na dúvida, nunca devemos nos economizar. E os desconhecidos deste romance de Murakami não se economizam. Eles têm escuta ativa, olhar ativo. Achei isso tão bonito!
São, pois, encantadores os tais ?estranhos? que cruzam as travessias de Kafka e Nakata. Oshima e Hoshino, encenando as personagens supostamente secundárias da trama, proporcionam diálogos lindos com os protagonistas e têm trajetórias muito ricas no romance. Mais do que isso: também muitas personagens quase ?terciárias?, como as que dão carona e informação para Nakata num determinado momento, passam rapidamente pelo livro, mas deixam saudades!
Este é o meu primeiro contato com Murakami, mas eu arriscaria definir sua escrita como um misto, bem-sucedido, de lirismo com surrealismo. E nesta obra, em específico, vem do surrealismo/realismo mágico o fato de eu não ter dado cinco estrelas: apesar de, no geral, ser fascinante o modo como elementos mágicos são incorporados à narrativa, em "Kafka à beira-mar? surgem personagens e situações fantasmagóricas que não me convenceram por completo, sobretudo nos capítulos finais, sobretudo nas passagens que envolvem sexo (e não sou moralista não, estou falando de coesão narrativa; achei excessivo). Senti, inclusive, que o livro poderia ter 50 páginas a menos, mesmo tendo a certeza de que esse é o tipo de romance no qual o leitor deve entrar para perder, isto é: nem tudo fará sentido, nem tudo será explicado? O leitor é um derrotado de antemão. E tudo bem? E ainda bem! Afinal, a arte nunca se comprometeu a ser uma fonte de respostas, não é?
Estou certa de que a obra vai ficar na minha memória para sempre. Há pontos baixos no livro, mas os pontos altos são altíssimos! Recomendo muito a leitura, mas aconselho: vá disposta (o) a perder e a perder-se. É lindamente triste, tem umas doidera no meio, mas é, sobretudo, muito encantador.
Obs.: Só o Nakata já vale a leitura deste romance. Virei ?Nakater? também! Baita personagem, daquelas que a gente quer guardar em um potinho!