Andreia Santana 22/03/2023
Herança de traumas infantis
Adultos costumam assustar crianças. Pela altura e força, possibilidade das broncas e, obviamente, a distribuição de castigos. Se nos tempos atuais a truculência de muita gente grande gera traumas que as crianças carregam para a vida, nos séculos XVIII ou XIX, quando o próprio conceito de infância mal existia, e muito menos o respeito aos pequenos, a coisa era bem pior. Logo, desde muito novinhas, elas entendiam – ainda entendem, a depender dos contextos de vida - que as pessoas maiores é que mandam. O medo primordial dos filhotes pelos humanos mais velhos é a costura invisível de O homem da areia.
Nesse texto publicado originalmente em 1816 e integrante do livro Noturnos, E.T.A Hoffmann - conhecido como um dos nomes principais das origens da literatura fantástica -, pega todo esse pavor infantil pelos adultos e transforma em uma narrativa sobrenatural e sinistra, um conto de terror angustiante e recheado de paranoia, delírios e assombrações.
Essa é a história de Natanael, um jovem atormentado, que escreve uma carta para Lothar, um amigo de infância e irmão de sua noiva, Clara, contando a experiência em reencontrar a nêmeses de sua infância, um abominável advogado que era amigo de seu pai e a figura enigmática e desagradável que ele associou a um antigo personagem folclórico, o Homem da Areia, um bicho-papão usado pelos empregados para aquietar as crianças.
O advogado é uma criatura grotesca, um ‘tio do pavê’ oitocentista. Pirracento, rabugento, um adulto que não esconde desprezar crianças e que sente prazer em lhes impor torturas psicológicas. Crescido, Natanael se envolve em uma série de situações cada vez mais mórbidas e sombrias devido à obsessão pelo personagem e pelo Homem da Areia.
Ao longo do conto, o leitor é apresentado aos fatos pelos olhos de Natanael, de Lothar e de Clara, a noiva pragmática, inteligente e racional, uma grata surpresa em se tratando de personagem feminina criada por um homem, nos idos de 1800. A pretendente e o futuro cunhado se preocupam com a saúde mental cada vez mais deteriorada de Natanael, que vai derivando para um estado paranoico permanente. A sensação é que a frágil e melancólica criança que ele foi no passado, entrevista nos episódios narrados de sua infância na carta a Lothar, evoluiu para um adulto bipolar, alternando estágios de prostração e mania.
Além de elementos de terror, o texto traz também algumas premissas da ficção científica. Ao menos de como esse universo era explorado na literatura do século XIX, com o surgimento das histórias em que os primeiros autômatos tomavam o lugar dos humanos.
Os roteiros de Ex-Machina – Instinto Artificia (Alex Garland, 2014) e da série Westworld, da HBO, bebem na fonte desse período ao retratar o pavor e o fascínio que as pessoas sempre sentiram pelos androides.
Os contos do alemão Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffman, certamente, figuram entre as inspirações para essas produções do audiovisual..
O exemplar que eu li:
É mais um livro da coleção Novelas Imortais, organizada por Fernando Sabino e publicada pelo selo Jovens Leitores, da Editora Rocco. Dessa vez, também li a versão em e-book, assim como aconteceu com Bartleby – O escriturário. Peguei emprestado da biblioteca do Kindle Unlimited, dentro do esquema de empréstimos mensais para os usuários do serviço.
Ficha Técnica:
O Homem da Areia
Autor: E.T.A. Hoffmann
Tradução: Ary Quintella
Prefácio: Fernando Sabino
Editora: Rocco/Jovens Leitores
88 páginas
*R$ 12,50 (E-book) e R$ 19,50 (livro físico). Disponível para empréstimo no Kindle
*Pesquisado em 13/03/23 no site da Rocco
site: https://mardehistorias.wordpress.com/