Jorge 15/03/2024
Reflexões Sobre Arte e Teoria do Conhecimento
Ler este livro foi um verdadeiro desafio de força de vontade. Pensei em abandonar muitas vezes, e li em outra resenha aqui no site que o texto da Fenomenologia é "mais denso do que qualquer obra de Kant". Isso não me surpreendeu nada. Apesar da Ideia e o Ideal ser bem complexa, a Fenomenologia do Espírito é infinitamente mais. Isto foi explicitado pelo editor, pois foi esclarecido no prefácio que esta obra perdeu muita profundidade e até sentido na sua tradução, a qual era dificílima, por causa da singularidade dos escritos.
Dito isto, vamos analisar a obra em seu conteúdo:
A Ideia e o Ideal:
Neste trabalho, o qual compõe mais da metade do livro, Hegel busca a determinação do belo de forma objetiva. Para tanto, ele analisará os meios pelos quais a beleza é percebida pelo ser humano. Primeiramente, é compreendido que a arte é a manifestação do espírito, e quanto mais esta manifestação se aproximar de seu conceito, mais bela será, e também, mais próxima do ideal. Este processo de manifestação se dá através da forma, a qual é sua representação sensível, e esta representação está sujeita às leis e métodos da materialidade. Neste âmbito, entram em destaque as ferramentas empregadas e a técnica, os quais são artifícios materiais inerentes da forma, sem ligação direta com o conceito. Portanto, compreende-se que a arte não é imitação da natureza, como se diz comumente. Esta última, até mesmo é considerada desprovida de beleza pelo autor, pois a beleza lhe é conferida pelo intelecto humano. A arte deve ser um acordo entre o ideal e o mundano, criando a representação ideal, consequentemente, não é a técnica mais apurada que confere beleza a uma obra, mas sim sua aproximação máxima do conceito, quer dizer, existem os elementos materiais, técnica e método, e no aspecto espiritual, criatividade e espírito; a verdadeira obra de arte deve ser uma junção de todos esses elementos.
O autor citou as concepções de diversos autores a respeito da ideia do belo, e a mais interessante delas foi a de Kant, que entende que a beleza é uma noção que está fora do objeto, fora de todos os conceitos, e é um prazer geral, um fim em si, por isso, são os objetos que atingem a beleza, e não a beleza que lhes é conferida, desta forma, o sentimento de agrado experienciado pelo ser humano, é desinteressado e desprovido de desejo.
As reflexões de Hegel a respeito da evolução da arte também são excelentes. Ele dividiu a evolução da arte em três formatos: simbólico, clássico e romântico. A arte simbólica consiste nas primeiras criações do homem, ao tentar manipular o espaço para algum fim, e neste aspecto, a arte ainda está em sua forma mais rudimentar, especialmente ligada ao material, e até determinada por ele, quase totalmente desprovida de conceito. Neste caso se aplica a arquitetura, que em suas máximas realizações, nos templos religiosos, dava forma não a um conteúdo espiritual, mas ao espaço onde a espiritualidade poderia se manifestar. Pelo emprego puramente lógico das formas geométricas, e a exiguidade de qualquer conceituação, esta é considerada uma arte simbólica. O que nós entendemos por símbolos, em geral, também se encaixa perfeitamente nesta descrição. Os símbolos são formas insuficientemente providas de qualquer significado, e que possuem certa distância do conceito, sendo compreendidos por nós somente dentro de um contexto.
A arte clássica é a escultura, onde a principal forma adotada é o ser humano. Os deuses possuem essa feição humana, e para o autor, neste momento, o conteúdo e a forma estão em perfeito equilíbrio. É uma arte que não pode ser mais profunda do que se presta a ser, e ainda assim, é capaz de atingir a ideia com muito mais profundidade do que a arquitetura, e à vista disso, está mais próxima do ideal.
Por fim, as artes românticas são a pintura, música e poesia. As artes essencialmente conceituais. A pintura é capaz de eternizar momentos que seriam perdidos no tempo-espaço, além de dar destaque e fazerem ser notadas coisas que, sem ela, seriam irrelevantes; a música manifesta sentimentos através do som, cujo aspecto material é absolutamente arbitrário diante da natureza. Os sons, isolados, não possuem nenhum sentido, mas quando unidos em prol de um ideal concebido pelo homem, tornam-se arte sublime que encanta as almas, pois é a própria alma expondo seu conteúdo; a poesia chega a um nível conceitual ainda mais elevado do que a música, pois sequer emprega meios materiais para a sua plena execução. As letras e palavras, são métodos terminantemente humanos. Nada que emprega uma língua, o saber falado e escrito, é encontrado na natureza. É a mais pura manifestação do intelecto, e por isso, configura a mais poderosa de todas as artes.
Estas são algumas das reflexões mais notáveis deste livro. O autor fala do belo no reino vegetal e animal, e comete alguns deslizes a este respeito, os quais se devem, muito provavelmente, ao naturalismo ainda rudimentar de seu tempo.
Hegel também elaborou muitos pontos interessantes sobre os conflitos nas obras literárias, os quais são potenciais de beleza e interesse do leitor, utilizando como parâmetro sempre o grande clássico de Homero, e procurando analisar os aspectos que tornaram esta obra tão célebre por todos os povos.
Depois disso, dissertou-se a respeito das perspectivas práticas da obra de arte. Sua relação com o público; a historicidade e coesão da mesma, como elementos componentes e vitais. O autor esclareceu que se deve haver uma coerência entre a historicidade e o subjetivismo da obra, ao mesmo tempo que o escritor não pode se prender em demasia aos costumes de sua época, mas falar às almas de todos os homens, de todas as épocas. Este é o propósito real da arte. E sob este prisma, compreende-se que a arte deve ser inteligível por todas as massas, e não existir apenas para um grupo seleto de pessoas ou para si mesma.
A Fenomenologia do Espírito:
Esta é uma obra que busca analisar o processo do conhecimento em seu aspecto mais elementar, ou seja, é um estudo epistemológico. O texto é demasiado complexo, mas é possível apreender que Hegel compreende a consciência como independente e um mecanismo capaz de se aproximar da verdade, mas que este conteúdo, sempre se mostrará adulterado de alguma forma, porque os meios pelos quais chegou à consciência assim o fizeram. Um objeto qualquer existe em-si e para-si-mesmo, independente da percepção. E as qualidades dele, apreendidas pela percepção, também são produto dela mesma, e portanto, o objeto passa a existir em-si-e-para-outro. É compreendido que este processo, levemente adulterado, é inevitável para a existência, e que o próprio aprendizado, não, a própria existência, é um eterno paradoxo. O objetivo geral desta obra parece tecer uma espécie de crítica construtiva à ciência, pois, ao final das contas, Hegel entende que a ciência é o conhecimento prático verdadeiro (o conhecimento do espírito é a religião), e que deve assim ser utilizada como fonte de saber.
"A atividade de separar é a força e o trabalho do entendimento, o maior e o mais admirável poder, ou, melhor ainda, o poder absoluto [...] o Espírito é esse poder somente quando contempla o negativo face a face e junto a ele permanece. Esse permanecer é a força mágica que converte o negativo em ser. Tal força é o mesmo que acima foi denominado sujeito e que, pelo fato de conferir o existir à determinidade no seu elemento, suprime a imediateidade abstrata, ou seja, que apenas é em geral. O sujeito é, por conseguinte, a substância verdadeira, o ser ou a imediateidade que não tem fora de si a mediação, mas é a própria mediação."
A História da Filosofia:
Um trabalho reflexivo a respeito das ideias filosóficas. Não se trata de um catálogo de filosofias atribuídas a autores e cujos pensamentos são expostos em resumo. É uma elaboração puramente exordial, que busca determinar o que é Filosofia, e como estudar sua história. Para tanto, o autor buscou as raízes do conhecimento nos pensadores antigos, e ponderou a respeito, estabelecendo a Filosofia como a busca pela verdade, mas cujos empreendimentos contradiziam os seus anteriores. E sobre isso, concluiu que a Filosofia se transforma, e nunca se anula. As refutações acontecem em campo prático apenas, mas a verdade é revelada em maior nível, quando uma nova filosofia surge. Cada Filosofia busca responder as questões de seu tempo, e por isso, não se pode aplicar princípios atuais às filosofias antigas, porque não é a isso que elas se propõem. A filosofia atual apenas chegou a este nível por causa da anterior.
A partir desta compreensão, o autor se voltou à História e concluiu que a Filosofia de fato surgiu na Grécia antiga, devido, especialmente, à liberdade prática deste povo, onde, ao menos, uma classe social numerosa, obteve liberdade para estimular o pensamento. O que os diferenciava dos orientais, que foram progenitores da espiritualidade antes da Filosofia.
Conclusões:
A obra de Hegel é extensa e formidável. Seu texto é mais complexo do que o necessário. Quero dizer, certas ideias podem ser expressas com mais simplicidade do que a empregada por ele. Eu li em Schopenhauer algo como "Não há exemplo melhor de um texto excepcionalmente enfeitado, cujo verdadeiro conteúdo é completamente desprovido de conhecimento do que Hegel". Ele não disse exatamente desta forma, mas foi com o mesmo teor. Não obstante, muito há a se apreender destes textos, conforme eu o fiz acima, mas é um livro que eu não leria outra vez. Hegel é um neoplatonista declarado, e isto é um dos fatores que atribuem esse excesso de ornamentação ao texto, que na verdade, não possui grande significação, pois busca exprimir conceitos metafísicos que são inexprimíveis, e assim cai num eterno ciclo vicioso do auto-cancelamento.
A Ideia e o Ideal tem algo a agregar para o pensamento, especialmente a quem se propõe a apreciar arte. Neste sentido, é uma obra grandiosa, embora dificilmente conclua alguma coisa em suas observações, além de corriqueiramente abordar assuntos diversos, interrompendo a linha principal do raciocínio. Hegel costuma desconstruir todo o pensamento, para então o formular novamente, e este processo acaba ocupando todo o estudo, dificilmente abrindo novas portas. Parece que ele balbucia demais a respeito do impensável, e neste procedimento, perde-se no éter incomensurável da metafísica.
Lamento que a resenha não pudesse ser mais curta, mas é impossível analisar uma obra tão densa em poucas linhas.