spoiler visualizarpampamcviana 12/01/2024
Você vai se surpreender!
Antes de iniciar sua leitura da minha resenha, saiba que aqui tem spoiler! Ok, eu sei que sinalizei esta informação no Skoob. Decidi, também, sinalizar isto dentro do texto, para quem ainda assim o quiser ler, mas sem surpresas.
Este é um dos livros que mais me surpreenderam positivamente. Comecei a lê-lo sem expectativa. Terminei de lê-lo com a mente explodindo com tanta informação e perspicácia do Lima Barreto em traduzir a gente de sua época, e isto ainda se refletir nos dias de hoje. Quando descobri que ele escreveu este livro em 1912, fiquei perplexa! Quanta inteligência em 240 páginas. Lima Barreto, "você é um visionário"! Vamos por partes...
Primeiro, como cheguei a este livro: como já contei em outras resenhas, minha sogra decidiu fazer uma grande limpeza em casa, e isto incluía jogar alguns livros fora. Resgatei alguns do destino fatídico, fornecendo, ironicamente, um fim melhor para algo intitulado como "triste fim". rss Por um tempo, ele ficou parado em minha prateleira. Até que um dia, ao olhar os episódios do podcast "Põe na estante", vi que havia um sobre ele, e decidi lê-lo. Que surpresa maravilhosa!
#INÍCIO DO SPOILER#
Segundo, para quem gosta de histórias de amor, aqui não é o lugar. Inclusive, existe pouco (ou nenhum) amor neste livro. Somente ironia e realismo. Ele é dividido em três partes: a primeira que mostra como a vida de Quaresma era, de forma monótona e sistemática, com horários bem definidos durante o seu dia e um emprego público "estável"; a segunda, após o Quaresma ter uma grande decepção e, consequentemente, um breve momento de loucura, mostrando depois sua recuperação e a aquisição da chácara chamada "Sossego", o que também era uma ironia, pois o lugar não fornecia sossego algum aos seus moradores; e a terceira parte, mostrando uma breve tentativa de revolução, com os insurgentes lutando contra o governo de Floriano Peixoto e a República (Velha). Se não estou enganada, puxando os meus conhecimentos do tempo de escola, estes rebeldes eram monarquistas e tiveram ajuda dos portugueses para armar a revolta. Saiba que em todas essas três partes, nosso querido personagem tem um triste fim. E quando achamos que o triste fim chegou, vemos que a mente de Lima Barreto não tem limites, ou, então, que ele achava que a vida era, realmente, muito "mais rica de aspectos tristes que de alegres".
#FIM DO SPOILER#
Terceiro: para quem deseja ler o livro, é preciso saber um pouco de história do Brasil. Mais precisamente sobre o governo do nosso segundo presidente do Brasil, Floriano Peixoto. Antes de assim o chamarem, antes até mesmo de haver uma "república" no Brasil, erámos uma colônia extrativista de Portugal, mas tivemos a "sorte" de a família real portuguesa vir debandar para estes lados com medo do tal Napoleão Bonaparte. Assim, houve uma época de (certo) desenvolvimento para um lugar que nem era considerado país e, após alguns anos, quando tínhamos como imperador o Rei Dom Pedro II, o mundo (leia-se Inglaterra) conspirava para obter um monte de Repúblicas (de preferência que pudessem comprar seus preciosos artigos, frutos da Revolução Industrial). Desta forma, alguns "conspiradores", desejando seguir os exemplos da gringa, e percebendo que sem os militares seus esforços seriam em vão, conseguiram convencer (a partir de fofocas) o Marechal Deodoro da Fonseca a participar da revolução. Ele era uma espécie de influencer dos militares, e os convenceu a se juntar aos civis e militares na "derrubada" da monarquia (sem armas), contanto que Deodoro fosse o primeiro presidente. Ou seja, deram um chute no Dom Pedro II, que foi parar em Portugal, após a traição deste seu grande "amigo da onça" Deodoro. No nome, o sistema era uma república, mas nada havia mudado para a maioria dos brasileiros. Inclusive, nem os nossos "líderes" sabiam o que queria dizer república. Instalaram um parlamento, fizeram uma legislação, mas a proposta estava um tanto embrionária. E nosso primeiro presidente, desgostoso com sua traição ao amigo português, não foi um representante digno de ser chamado presidente. Além disto, estava já muito velho, e com sua morte, após dois anos de governo, temos o seu horripilante vice, Floriano Peixoto, se tornando nosso segundo presidente do Brasil. É neste momento que a história se encontra, quando nossa república tem este presidente sanguinário tentando se manter no poder.
Por fim, quarto tópico: e essas discussões sociais que aparecem no livro??? Maravilhosas! Um livro escrito em 1912 consegue fazer críticas à/ao (segue lista):
- Governo
- Sociedade (e sua hipocrisia)
- Racismo
- Papel da mulher na sociedade patriarcal
- Casamento
Foi tudo escrito com tanta, mas tanta, inteligência, que me peguei relendo alguns parágrafos várias vezes durante a leitura (e, inclusive, lendo alto para um barista em uma cafeteria hehe). Para dar exemplos, citarei duas passagens (acredito não ser spoiler, por isso não marquei aqui no texto):
- Governo: "Uma tarde, porém, estava à espera da junta de bois que encomendara para o trabalho do arado, quando lhe apareceu à porta um soldado de polícia com papel oficial. Ele se lembrou da intimação municipal. Estava disposto a resistir, não se incomodou muito. Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da coletoria, cujo escrivão, Antonino Dutra, conforme estava no papel, intimava o Senhor Policarpo Quaresma a pagar quinhentos mil-réis de multa, por ter enviado produtos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos impostos. Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento voou logo para as coisas gerais, levado pelo seu patriotismo profundo. A quarenta quilômetros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao mercado umas batatas? Depois de Turgot, da Revolução, ainda havia alfândegas interiores? Como era possível fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e impostos? Se ao monopólio dos atravessadores do Rio se juntavam as exações do Estado, como era possível tirar da terra a remuneração consoladora?"
- Casamento: "- Gostas muito dele? - indagou o padrinho. Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma cousa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro? Também não. Todos os rapazes que ela conhecia, não possuíam relevo que a ferisse, não tinha o 'quê', ainda indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia bem o que era, não chegava e extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para as grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as ideias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe representar e de amar o indivíduo masculino. E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem, de 20 a 30 anos, o que ela sonhara que era bem possível tomasse a nuvem por Juno... Casava por hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo rapidamente e respondeu sem convicção ao padrinho: - Gosto."
E, fechando, se existe alguém mais patriota do que Policarpo Quaresma, desconheço!
"Não se sabia bem onde nascera, mas não fora decerto em São Paulo, nem no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo: Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha predileção por esta ou aquela parte de seu país, tanto assim que aquilo que o fazia vibrar de paixão não era só os pampas do Sul com o seu gado, não era o café de São Paulo, não eram o ouro e os diamantes de Minas, não era a beleza da Guanabara, não era a altura da Paulo Afonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o ímpeto de Andrade Neves - era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrelada do Cruzeiro."
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