Pandora 12/08/2023
Existem muitas resenhas de "Outubro: História da Revolução Russa" do China Miéville afirmando ser esse um livro de fácil leitura com uma prosa que flui. Particularmente não achei o livro de fácil leitura, demorei horrores para ler, recomecei do zero algumas vezes e, por fim, determinada a concluir a leitura fui lendo no melhor estilo "um pouquinho todo dia, todo dia um pouquinho".
Claro, o fato do livro ter me dado trabalho não me autoriza a classificá-lo como um livro ruim. É um livro bom que não demoniza nem glorifica a Revolução de 1917. O autor se coloca apenas na posição de quem narra os fatos e os protagonistas retomando as falas de homens e mulheres, citando ações, descrevendo situações vividas tanto nos centros metropolitanos como no campo. O China parte da narrativa dos antecedentes da Revolução Russa contando a lenda e história "real" de como foi fundada a cidade de Petrogrado (São Petersburgo) e as movimentações causadas pelo brutal processo de industrialização do Império Russo até o ano quase infinito de 1917.
Como leitora realmente achei o livro muitíssimo chato, mas não dá para negar o quanto a experiência de ler "Outubro" foi enriquecedora para quem, como eu, vive de ensinar História. O China anuncia já na introdução o quanto ele percebe o processo revolucionário russo como uma epopeia e é isso que ele entrega nessas páginas.
"O ano de 1917 foi uma epopeia, uma concatenação de aventuras, esperanças, traições, coincidências improváveis, guerra e intriga, de bravura, covardia, loucura, farsa, ousadia e tragédia, de ambições monumentais e mudanças, de luzes resplandecentes, aço, sombras, de trilhos e trens"
Tal como em uma epopeia, a narrativa é cheia de heróis e heroínas vivendo grandes bravatas. Desafiando a morte, enfrentando a vida, se tornando mitos, se assemelhando a divindades. Lenin é um Gilgamesh que em vez da imortalidade procura construir a raiz de uma sociedade onde exista "Pão, Paz e Terra" para todos e todas um discurso e pronunciamento por vez enquanto foge de tentativas de assassinato, luta contra adversários políticos e até mesmo aliados, pois mesmo entre os bolcheviques nem sempre os apelos do Lênin por "Todo Poder aos Sovietes" eram ouvidos.
Além do Lênin, são quase infinitos os nomes de semideuses, heróis e heroínas nessa epopeia, sei que tenho uma tendência a ir longe de mais na extensão dos meus textos, mas até eu tenho limites. Aliás, um ponto muito positivo é o quanto está em alto relevo o papel das mulheres nessa história. Camponesas lutando pela terra, trabalhadoras urbanas se tornando guerrilheiras, mulheres muçulmanas lutando por seus direitos individuais e coletivos, o Batalhão Feminino da Morte, as intelectuais que se pronunciam diante das situações.
É através dos feitos dos homens e mulheres envolvidos na Revolução responsável por acabar com o Império Russo e derrubar a Dinastia dos Romanov, que governou a Rússia por 155 anos, que China Miéville nos apresenta não só Outubro de 1917 e sim o ano todo, mês a mês, evento a evento.
Em determinado momento tive a impressão de 1917 ter sido um ano imenso, quase sem fim. Foi um ano intenso de crises e cobranças. O povo russo desafiou corajosamente a ordem vigente buscando o melhor destino para si enquanto o resto da Europa disputava entre si para ver quem ia pegar o maior pedaço da África, Ásia, Oceania e América Latina para explorar e destruir no processo.
Não tem caminhos através do qual eu ame menos o esforço desse povo por construir uma sociedade radicalmente igualitária onde "Paz, Pão e Terra" não seja privilégio de alguns, onde os direitos à vida, liberdade e segurança realmente sejam para todos. Todos sabemos através da experiência de viver em um mundo capitalista o quanto o Capitalismo não garante direitos a ninguém, porque não tentar outra forma de vida ou outro sistema econômico? O que nos impede? A resposta é simples: o próprio capitalismo nos impede. Os privilegiados nos impedem com unhas e dentes.
O processo da Revolução Russa pode ser contado como um romance com tons de epopeia, mas foi bem real. Os heróis e heroínas não eram filhos de divindades, eles e elas eram todos seres humanos em busca de uma vida melhor, instrumentalizando ideias socialistas para tentar encontrar soluções para os problemas do seu mundo, desafiando os poderosos da terra em nome de si mesmos. Eu reclamo do quanto foi difícil ler o China Miéville, mas terminei o livro chorando as lágrimas de quem também sonha com um mundo com "Paz, Pão e Terra", um mundo que não aconteceu na Rússia e tão pouco acontece fora dela.
Sabemos que apesar de destruir o Czar o governo de Josef Stalin não representa nenhum de nossos sonhos humanitários, mas nem por isso o legado da Revolução Russa é menos importante ou grandioso. As revoluções nos ensinam que é possível mudar até governos que duram centenas de anos. Obviamente nenhum governo que se pretende duradouro acha interessante estudar o coração pulsante das revoluções, a saber: a capacidade do povo unido na rua mudar o mundo.
No epílogo, o China Miéville reflete:
"A Revolução de Outubro traz, por um instante, um novo tipo de poder. Transitoriamente, há uma mudança para o controle da produção pelos trabalhadores e para os direitos dos camponeses à terra. Igualdade de direitos para homens e mulheres no trabalho e no casamento, direito ao divórcio, apoio à maternidade. Descriminalização da homossexualidade, cem anos atrás. Movimentos no sentido de autodeterminação nacional. Educação gratuita e universal, expansão da alfabetização, vem a explosão cultural, a sede de aprender, o desenvolvimento de universidades, séries de palestras e escolas para adultos. Uma mudança tanto na alma como na fábrica. E, ainda que esses momentos tenham sido extintos, revertidos, se transformado cedo demais em recordações e piadas, poderia ter sido de outra forma."
Eu vou refletir aqui:
"E, ainda que esses momentos tenham sido extintos, revertidos, se transformado cedo demais em recordações e piadas, uma revolução pode acontecer a qualquer momento e nada impede que ela possa terminar de outra forma. Muita gente pensa que é mais fácil o mundo acabar que o Capitalismo encontrar seu fim, mas o mundo pode não acabar e o capitalismo pode encontrar seu fim dentro de uma revolução que encontre uma forma totalmente nova de organizar a sociedade, uma forma com Pão, Paz e Terra para todes nós."
Coisas impossíveis acontecem todos os dias.
"Outubro: História da Revolução Russa" de China Miéville integra a lista dos 40 Livros Para Serem lidos Antes dos 40. Sempre me sinto muito vencendo quando termino um livro dessa lista!
site: https://elfpandora.blogspot.com/2023/08/outubro-historia-da-revolucao-russa-de.html