Júlia Fortuna 05/10/2023
"Não eram homens, eram animais, animais humanizados."
A Ilha do Dr. Moreau, de H. G. Wells, lançado em 1896, é um excelente clássico da ficção científica. Apesar de antigo, o livro apresenta pontos cruciais que estão presentes até hoje na contemporaneidade, o autor usa da imaginação para metaforizar questões como política, religião, relações de poder, o conceito de civilidade e sociedade em geral. Fiz um trabalho da escola, sobre esse livro no ano passado, e desde então fiquei curiosa para ler.
A história é narrada em primeira pessoa pelo personagem, Charles Prendick, que à deriva, sem esperanças de sobreviver em alto-mar, é resgatado por um navio em missão das mais incomuns: levar a uma pequena ilha no Pacífico algumas espécies de animais selvagens. Ainda debilitado, Prendick é obrigado a desembarcar na ilha junto com o carregamento. Lá, ele conhece a figura do dr. Moreau, um cientista que, exilado por suas pesquisas controversas na Inglaterra, realiza experimentos macabros com seus animais.
Os animais são submetidos à tortura e o Dr. Moreau vai testando suas teorias, modificando seus estados físicos, tornando-os assim, animais-humanos, que são descartados na ilha para viverem à sua própria sorte, regidos por uma lei que eles não entendem muito bem como funciona, mas que se não for obedecida pode causar graves punições. Por esse motivo, eles repetem constantemente as proibições, como um mantra que não deve ser esquecido. (Esse ponto em questão, me lembrou muito a Revolução dos Bichos).
O Dr. Moreau, é um tipo de cientista que acredita que tudo é matéria bruta, tendo aqui representado, a ingenuidade, ou perversão. Essa perspectiva errônea é conhecida como "reducionismo material", que consiste em negligenciar aspectos como a nossa consciência, nosso raciocínio e nossas motivações humanas. Por exemplo, afirmar que nossas emoções são simplesmente o resultado de descargas elétricas no cérebro é uma simplificação que ignora fatores externos. A química do cérebro pode ser uma consequência, mas não a causa fundamental das emoções.
A crítica a esses cientistas adeptos do reducionismo material é encapsulada na figura do Dr. Moreau nesta história. Ele demonstra desprezo pela vida e acredita que pode manipular a dor e o prazer, tratando os seres vivos como simples aglomerados de partículas em movimento que podem ser moldados à sua vontade.
Isso lembra o paradoxo do Navio de Teseu, proposto pelo pensador grego Plutarco. A história é a seguinte: Teseu parte em um navio em uma viagem de 50 anos, durante a qual ele substitui cada peça do navio à medida que se desgastam. O paradoxo levantado é que, a cada peça trocada, o navio ainda é o mesmo Navio de Teseu. Isso ecoa o debate sobre se a mudança de aparência altera a identidade de um ser ou se o ser permanece o mesmo, independentemente das mudanças externas. Sendo assim, isso contraria o pensamento do filósofo Parmênides, que diz: O ser é incapaz de mudar. Tendo em vista essas duas analogias, mostra-se algo contrário à proposta de mudança de Moreau, porque o ser tem que ser o mesmo na passagem do tempo. Portanto, nessa mudança de aparência forçada ele não consegue transformar por completo um ser no outro, pelo contrário, acontece outra coisa, ele cria um ser novo, e agora esta nova criatura está condenada a vagar pela terra com uma mente em conflito sobre seu verdadeiro ser primordial.
Ademais, os questionamentos levantados na obra também se manifestam através dos personagens humanos. Por exemplo, o personagem Montgomery, em várias ocasiões, tenta persuadir Prendick a consumir álcool. Inicialmente, fiquei em dúvida se o autor estava ou não criticando o consumo de álcool, mas o destino de Montgomery esclareceu isso de forma clara: ele é morto pelas bestas logo após, justamente, compartilhar bebida com as mesmas.
A Ilha do Dr. Moreau é um livro bastante curtinho, porém, provoca uma longa discussão reflexiva nos leitores sobre a moralidade científica. Eu ficaria horas falando sobre esse livro, mas, certamente, já falei demais.