jota 31/05/2020Minha avaliação: 4,5/5,0 – MUITO BOMCinco histórias mais ou menos curtas compõem este volume: O Muro, O Quarto, Erostrato, Intimidade e A Infância de Um Chefe. Foram escritas por Jean-Paul Sartre (1905-1980) às vésperas da Segunda Guerra Mundial e trazem temas que lhe são peculiares, quer dizer, suas histórias entrelaçam literatura e filosofia. Aqui, sobretudo, ele trata dos muros reais e existenciais que permeiam nossas vidas: eles podem ser um paredão de fuzilamento, as paredes de um quarto escuro, os obstáculos que se interpõem num relacionamento, a dificuldade de comunicação entre as pessoas, o preconceito etc. Isso posto, acho desnecessário apresentar Sartre mais a fundo: se aqui ele aparece como ficcionista, é muito mais conhecido como filósofo existencialista (a existência precede a essência), um patrimônio da cultura francesa. Mas é preciso dizer também que Sartre escreve muito bem, claramente, mesmo quando trata de coisas abstratas: seu texto flui, o leitor não fica entediado nunca. Ou quase nunca, pode ser...
Em O Muro, as paredes de uma cela cerceiam a liberdade de uns poucos prisioneiros durante a guerra civil espanhola (1936-1939). A um deles, Pablo, é oferecida a liberdade desde que informe aos guardas franquistas (leia-se fascistas) o esconderijo de outro combatente que desejam capturar. Os demais prisioneiros serão mortos contra um muro (paredão de fuzilamento). Pablo tem de escolher entre trair o amigo, entregar seu esconderijo, ou morrer fuzilado. A escolha é um dos temas centrais da filosofia sartreana (mesmo quando nada escolhemos estamos fazendo uma escolha, a de não escolher) e essa história termina não filosoficamente, mas ironicamente... [Avaliação: MUITO BOM]
O Quarto conta uma história da burguesia francesa: Eve é casada com Pierre, que transformou-se num alienado e a chama de Agathe. Os pais dela foram contra o casamento e agora querem que Eve se separe do marido, que Pierre seja internado num sanatório. Ele passa a maior parte do tempo num quarto escuro e entre coisas reais e outras tantas imaginárias vai vivendo sua vida. Os pais acreditam que a filha não o abandona porque eles se dariam muito bem na cama. O casal vai convivendo com os muros que se ergueram entre eles mesmos (seus conflitos) e entre eles e os pais de Eve (suas imposições). Sartre retrata uma situação, não explica como as coisas chegaram a esse ponto ou irão terminar, não há revolta nem reviravolta... [Avaliação: BOM, quase MUITO BOM]
Em Erostrato temos o estranho e insignificante funcionário Paul Hilbert como personagem, um sujeito fraco, medroso e de poucos contatos sociais. Sexualmente a coisa é pior ainda: ele não se relaciona com ninguém, paga prostitutas para se exibirem, humilha-as e goza na cueca ou então se masturba em frente a elas. Um dia conhece a história de Erostrato (ou Heróstrato), um grego que querendo tornar-se ilustre não achou nada melhor a fazer do que incendiar o templo de Éfeso, uma das sete maravilhas do mundo antigo. Hilbert pensa então que pode fazer algo parecido para ser reconhecido e valorizado. Tem um revolver e pretende matar alguém, porque acredita que todos já estão mortos mesmo (palavras de Sartre). Primeiro pensa em matar uma família a passeio, depois, num banheiro público atira num homem e, acuado, reserva uma bala para se matar. Como escreveu alguém, viver é destruir, derrubar as paredes e os muros que aprisionam: no caso, a porta de um banheiro... [Avaliação: MUITO BOM]
Intimidade, quarto texto, é sobretudo uma história existencialista, trata principalmente do relacionamento entre um jovem casal, Henri e Lulu, que não vai muito bem. Henri é impotente, e uma amiga dela a aconselha a deixá-lo, gozar a vida melhor. Mesmo que tente fazer isso, e Lulu faz, ela não consegue esquecer completamente Henri. Lulu passa por diferentes estágios: esposa, amante, amiga, porém as coisas ficam meio confusas nessa história. Mas seu início é antológico, não resisti e o transcrevo aqui:
“Lulu dormia nua não só porque gostava de se acariciar com as cobertas, mas também porque lavagem de roupa custa caro. A princípio Henri protestou; não se deve dormir nu, isto não se faz, é nojento. Acabou, porém, por comodismo, seguindo o exemplo da mulher; ele era correto como uma estaca quando se achava no meio de outras pessoas (admirava os suíços e particularmente os genebrinos, achava-os altivos porque eram impassíveis) mas negligenciava as pequenas coisas, por exemplo, não era muito asseado, raramente mudava de cuecas; quando Lulu as punha na roupa suja, não podia deixar de observar o seu fundo amarelado à força de roçar contra o rego das nádegas. Pessoalmente, Lulu não se incomodava com a sujeira: dá um ar de intimidade, cria certos sombreados familiares. No côncavo dos cotovelos, por exemplo. Não gostava dos ingleses, dos seus corpos sem personalidade, sem nenhum cheiro. Sentia, porém, horror às negligências do marido, porque refletiam um carinho excessivo por si próprio. De manhã, ao acordar, ele se sentia sempre terno, a cabeça cheia de sonhos, e o dia claro, a água fria, o pelo áspero das escovas lhe faziam o efeito de brutais injustiças.” E por aí vai, mas não tão divertido como nesse início, e se complica um pouco depois, porque a existência humana é complicada... [Avaliação: BOM, quase MUITO BOM]
Finaliza o livro uma narrativa bem mais longa do que as anteriores, uma novela mesmo, segundo alguns especialistas, A Infância de Um Chefe. Sartre conta aqui não apenas a infância de Lucien Fleurier, um filho da pequena burguesia industrial francesa dos anos iniciais do século XX, também sua juventude. Como o pai, ele pretende ser um chefe, no caso, dos operários da indústria paterna em uma cidade do interior da França. Ao contrário do pai (que pensava que um chefe devia fazer-se obedecer e amar), Lucien pensa erradamente que os filhos dos proprietários devem ser sempre chefes e os filhos dos operários, operários como os pais, ou seja, cada qual nasce para ser o que já lhe foi determinado antes. [Assim, Lucien parece pensar que haveria um “muro social”, o destino impedindo a mobilidade das pessoas.]
Mas antes que se chegue a esse ponto temos toda a infância do pequeno Lucien, que é tratado como uma bonequinha pelas amigas da mãe. Mais tarde, jovem, é deflorado por um homem mais velho, um pensador que admirava e por isso aceitou o ato, mas depois, aflito, pensa ser um pederasta, coisa que não deseja ser nem assumir, o que o envergonharia profundamente. Já estudante em Paris, ao beijar Maud, uma garota e depois ter com ela relações sexuais e gostar, assume que não, não é homossexual. Por essa época também admite seu profundo antissemitismo (junto com amigos, chega a espancar um judeu na rua, sem que ele lhes tenha feito qualquer coisa), o que o torna ainda mais antipático ao leitor. E a alguns colegas, em outro episódio, quando se recusa a apertar a mão de um brilhante estudante judeu numa festa.
Lucien pensava também que queria se casar cedo, com uma moça de pele clara, casta, virgem, com quem teria muitos filhos (com Maud não, ele diz que ela transava com todo mundo). E se impacientava para poder continuar a obra do pai, assumir a chefia da indústria: será que o sr. Fleurier ainda viveria muito ou morreria logo? Por fim, deixaria crescer um bigode... Resumidamente, e muito, assim era o personagem Lucien Fleurier. Sartre, ao contrário, não era racista, antissemita, e mesmo que tivesse algumas ideias em comum com o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) quanto ao existencialismo, escreveu um famoso ensaio publicado em 1946, A Questão Judaica, em que discutia o racismo e o condenava, claro. O antissemitismo estava arraigado à sociedade francesa à época da invasão nazista ao país. [Avaliação: texto MUITO BOM, embora muito longo]
Lido entre 23 e 30/05/2020.