Paulo 24/04/2018
Elric é um personagem criado por Michael Moorcock e que representa um dos pilares do gênero capa e espada. Curiosamente o personagem não é muito conhecido no Brasil. Ele já foi adaptado várias vezes em quadrinhos pelos mais diversos autores. Chegou até mesmo a lutar contra o Conan em uma edição antiga publicada pela Marvel na década de 1980. Essa nova adaptação do personagem foi feito pela Glénat, uma editora europeia, que escalou um time de escritores e artistas para darem o devido tratamento ao personagem. A adaptação está tão boa que o próprio Moorcock deu o aval para ela e disse que escreveria dessa forma se tivesse pensado as coisas de forma diferenciada.
Vamos falar da edição? Elric - O Trono de Rubi é o quadrinho inaugural de um novo selo da Mythos chamado Gold Edition voltado para a publicação de quadrinhos europeus de alta qualidade. O tratamento feito pela editora é luxuoso com uma imagem grande de Elric sentado em seu trono, o título envernizado e o selo da edição em hot stamp dourado. O formato da edição é enorme, em 31x23cm, ou seja, padrão europeu que valoriza o traço dos artistas. O papel usado é couché. No começo temos um prólogo escrito por Moorcock e outro texto escrito por Alan Moore contando um pouco das várias versões dadas ao personagem e o que ele acredita que são as influências por trás do império de Melniboné. Ao final da edição, temos vários extras incríveis. Uma série de esboços dos artistas mostrando o processo de criação dos personagens. Vou comentar sobre isso um pouco mais abaixo.
Para quem está preocupado de isso ser uma série, fiquem tranquilos. Temos aqui uma história fechada. O Trono de Rubi é em dois capítulos, apesar de estar sendo produzidos novos volume para o Elric na Europa. Aqui dá para acompanhar a história numa boa e ver um pouco de como Elric adquiriu sua famosa espada devoradora de almas, Stormbringer. Vale mencionar a narração: a história é contada por alguém que se refere a Elric como meu amado, meu querido. No começo o leitor fica com uma impressão X de quem é o narrador, mas vai tomar uma bela rasteira do roteirista. Apesar de ter um aspecto bem literário e estoico em seus diálogos, não há enormes quantidades de texto. Muito pelo contrário... a fluidez da narrativa é incrível e a gente se demora mais apreciando a arte do que lendo o texto. A tradução da Mythos está excepcional e ficou nas mãos de dois mestres dessa arte. Texto tranquilo, sem quaisquer problemas de tradução e nem um pouco truncado.
A arte é um desbunde. Não tem como usar outro adjetivo. O leitor chora de alegria ao ver algo tão magnífico nas páginas da edição. Os artistas conseguiram capturar muito bem toda a decadência de Melniboné nas páginas. Vários detalhes estão presentes nas páginas como as gravuras de seres abissais, as localidades suntuosas e grandiosas, o imenso trono de rubi, as orgias incessantes e os sacrifícios mortíferos. A podridão infecta nossos sentidos e a gente é capaz de perceber que o reino está chegando ao fim. Em contraste os Reinos Jovens são belos e magníficos: longas extensões em verde repleta de águas e belezas naturais. Enquanto o primeiro é tomado pela magia e pelo contato com os demônios, o segundo é jovem e esbelto, com muitas belezas a serem exploradas. O design de personagens também é incrível. Os melniboneanos claramente tem inspiração nos elfos e nos elfos negros (no caso de Elric). São esbeltos, alguns fortes... a compleição deles é imperiosa. Como a gente pode ler nos extras, os artistas se inspiraram na obra de Clive Barker (no Hellraiser e nos cenobitas) para criar os trajes dos melniboneanos. Dá um efeito animal nas cenas; roupas de couro, algumas com pregos. O visual de Yrkkoon com aquela espécie de chapéu na cabeça é assustador.
Vale destacar o processo de produção do quadrinho que é bem diferente. Ele passou por três processos até chegar ao produto final: um artista é encarregado dos rascunhos iniciais, outro faz arte-final e outro é responsável pelas cores e por alguns retoques. Isso faz uma diferença incrível entre o que aparece em um primeiro momento e o resultado após o polimento. A captura também das ambientações tem uma diferença grande: por exemplo o que parecia um ambiente branco e simples de um porto se transforma em um lugar cruel e grandioso após a inserção das cores. Alguns cenários criados são deslumbrantes: Straasha, o deus dos mares, separando o mar em dois abismos, o salão do trono de rubi, a cidade dos condenados. Muitos são os detalhes presentes em cada cenário. Recomendo a todos que passem um tempo observando.
"Há tempos tenho sido paciente e complacente contigo. De agora em diante, serei o imperador cruel que tanto desejavas que eu fosse.
Estás banido de Imrryr! Eu te condeno ao exílio nos reinos jovens. Deixarás a ilha amanhã, desarmado, com o rosto marcado a ferro! Todo melniboneano receberá ordem para te caçar e me trazer tua cabeça! Esta noite, porém, convido-te à minha mesa para um último banquete, no qual sentirás o gosto amargo da tua traição.
Ajoelhado a meus pés como um escravo humano, comerás o coração de todos os que ousaram te seguir e levantaram espadas contra mim. Dize-me, primo... Agora pareço melniboneano suficiente para ti?"
Temos uma temática que une as duas narrativas: a ambição de Yrkkoon pelo trono. Ele é um homem apegado aos valores antigos de Melniboné e Elric representa a fraqueza do império. O lado mais filosófico do protagonista incomoda a ele e a toda uma camada de conservadores. A todo o momento o feiticeiro albino é testado pelos cortesãos e isso incomoda a Cymoril, a consorte de Elric e irmã de Yrkkoon. Para ela, o rei não deve ser questionado. As inquietações de Yrkkoon vão levar à sedição e causarão graves problemas para o reino. A relação de Elric e Cymoril tem um pouco de amor sim, mas o personagem depende da feiticeira para manter sua saúde. Quando acontece uma tragédia no reino, o protagonista acaba precisando tomar medidas drásticas. Ao final dos dois capítulos, a decisão dele vai parecer estranha, mas faz total sentido por conta dos portentos que lhe foram contados por Straasha.
Vale dizer também que os deuses tem um papel muito importante na história. Os melniboneanos são tratados como peões por eles. Temos três deuses participando diretamente aqui: Straasha, deus do mar, Grome, deus da terra e Arioch, o mestre das espadas. Cada um deles tem seu próprio interesse ao lidar com o mundo. Fazer pactos com os deuses é uma via de mão dupla. Nunca acredite que alguém vai sair ileso de um acordo com eles. Elric vai descobrir isso da pior maneira possível. Se ele seria capaz de realizar seus objetivos sem a ajuda de Arioch, acho pouco provável. Apesar de ele ser um excelente espadachim, a ajuda que Yrkkoon obteve era muito grande. E a gente vai ver o tom de ironia lá no final.
Melniboné é um reino decadente. Conseguimos ver isso na postura indolente dos seus habitantes. O abuso do luxo e da luxúria, os sacrifícios. Tudo transborda o que há de pior no ser humano. O próprio Elric é um anti-herói. Não tentem enxergá-lo como virtuoso. Sua postura em relação aos excessos é simplesmente porque ele não vê sentido nisso. Dá para ver o caráter do personagem quando eles precisam lidar com humanos em um vilarejo. Ele não se arroga de ameaçá-los. Para ele, os melniboneanos se situam em outro patamar em relação aos homens.
Elric - O Trono de Rubi é mais do que um quadrinho, uma obra de arte. Com um roteiro competente e uma apresentação grandiosa, isso se une a um traço polido e cenários exuberantes. A Mythos iniciou com tudo o seu novo selo e o tratamento que eles deram à edição brasileira ajudou e muito na qualidade final.