Gabriel Rocha 14/02/2022
16 anos depois, continuamos distraídos
James Lovelock é um dos maiores pensadores vivos, no alto dos seus 102 anos. Mas, pra nossa sorte, ele é muito mais que isso: ele é um dos mais corajosos pensadores vivos. E o teor voraz de suas palavras não deveria nos chocar ou imobilizar, mas convocar um avivamento sem precedentes.
'A Vingança de Gaia' não é um livro panfletário, como se fosse uma simples estratégia de divulgação da hoje já acolhida e respaldada Teoria de Gaia e das implicações do aquecimento global, tão pouco fica na superficialidade de demonstrar qual será essa vingança, os resultados de nossa massiva destruição. Indo além, Lovelock usa do seu espaço de locução para balizar e apresentar as intervenções imediatas que precisaríamos tomar para frear nossa própria extinção, no que tange à arquitetura urbana, à ecologia, à agronomia, à política e demais composições da vida social e natural, assim como pesa sua lucidez em práticas e recomendações ilusórias, que só servem para desfaçatez. Cita, inclusive, a maior ameaça natural imediata (e previsível) que o desmatamento, produto do crescimento ilimitado, traz consigo: a proliferação de "microrganismos ocasionais" que em pouquíssimo tempo propagam uma pandemia - e qualquer relação com a atual realidade não é mera coincidência.
Pensando em termos probabilísticos, como o faz um cientista, discerne sobretudo as melhores alternativas de energia sustentável - e se ele conclui, plenamente embasado, pelo menos com as informações que dispunha até ali, que a Energia Nuclear era o melhor caminho, é porque se trata de uma solução matemática, numa equação que envolve a saúde de Gaia e a manutenção de uma humanidade, com quase 8 bilhões de pessoas, dependente da eletricidade para tudo.
Contudo, para nosso infortúnio, a suspensão da racionalidade continua a contrapor àquilo que o desenvolvimento parecia nos sugerir historicamente. Quando a razão científica, aquela mesma que nos fez abocanhar o mundo a bel-prazer, precisou exortar que o "progresso" interminável era inconciliável com a vida nesse planeta, torcemos e nariz e caímos nesse vórtice de dispersão do conhecimento. Sem um domínio intelectual centralizado na virtude dos saberes metodologicamente verificados, a Era da Informação presencia a propagação da mentira, nos impedindo de atingir o Limiar entre as práticas tribais de um consumo desenfreado e o domínio do sistema da Consciência de Gaia (possibilidade, que aos olhos da metafísica, pode ter sido nos entregue de bandeja, e nos o recusamos aceitar a troco da frivolidade). O resultado é a tragédia de perceber que temos todos os recursos para criar uma existência digna, mas optamos deliberadamente por ignorá-los.
E, mesmo assim, diante do apocalipse, ainda que negando a razão, confiamos inconscientemente numa retirada mágica através da tecnologia, como se nossos recursos paliativos pudessem dar conta de reproduzir um sistema que levou bilhões de anos para ser executado com perfeição - o que, considerando os frequentes alertas da ciência sobre nossa insustentável situação, é assertivo garantir a impossibilidade dessa fé, tão cega quanto a de qualquer religião.
Por mais que esqueça alguns outros pontos vitais de nossa voracidade, como citar diretamente o problema do lixo, 'A Vingança de Gaia' traz um compêndio essencial daquilo que deveria ecoar por nossas casas, conversas, instituições e reivindicações públicas. Afinal, como diz o cientista Sidarta Ribeiro, ou mudamos ou nos acabamos: todo o resto é distração.