Paulo 26/04/2020
Esse é o terceiro romance que eu leio do Murakami. Se Sono foi uma narrativa hermética e possuindo um roteiro bem limitado a analisar a protagonista, Crônica do Pássaro de Corda vai pelo caminho oposto para alcançar o mesmo objetivo. Temos um protagonista que está conformado com sua vida do jeito que ela está. Mas, tudo na vida se move como dunas de areias e as coisas começam a dar errado rapidamente. Murakami luta para fazer o personagem reagir àquilo que acontece ao seu redor. As batalhas e angústias que serão vividas pelos personagens espelham problemas bem reais de nosso cotidiano. Claro que tudo isso entremeado por aquele limiar entre o real e o fantástico que o autor adora atravessar.
Preciso dizer que Crônica do Pássaro de Corda é um livro bem metódico. Aliás, Murakami é um autor que todos dizem admirar, mas poucos confirmam que realmente leem. Isto é porque mesmo a escrita dele sendo belíssima, suas histórias contém camadas e mais camadas de histórias que se passam em uma velocidade reduzida. Acreditem: tudo o que é colocado nas mais de setecentas páginas deste livro tem uma resolução e um propósito para existirem. Vi elementos de enredo mencionados no primeiro e no segundo capítulos que só irão se resolver nas páginas finais. Esse é o exemplo da estranha mulher do telefone que fala sacanagens para o Toru Okada. O curioso é que em determinado momento eu jurei que o autor tivesse esquecido desse plot. Na verdade não. Você só vai entender aquilo após ter juntado todas as peças da narrativa. Não digo que seja uma narrativa convergente porque ela não tem essa característica, mas muito mais um enorme quebra-cabeças cujas peças estão espalhadas pelo sofá da sala e você não sabe onde estão as bordas ou o miolo. Aos poucos vamos tendo insights de onde encaixar cada uma delas. As informações completas sobre o formato da imagem do quebra-cabeças só teremos muito mais à frente. E talvez seja esse um dos calcanhares de Aquiles deste ótimo livro para aqueles que não estão acostumados com a escrita do Murakami.
Ou seja, nunca, jamais comecem a ler Haruki Murakami por Crônica do Pássaro de Corda.
Se posso falar que as informações são fornecidas de forma homeopática, o mesmo pode ser dito acerca de sua explicação. Murakami não explica nada aos leitores, deixando-os tirarem suas conclusões por si mesmos. Então não espere que o autor entregue informações de forma mastigada. Várias conclusões eu tirei por mim mesmo e pode estar certo ou errado. Depende de nossa interpretação acerca de várias situações acontecidas na narrativa. Como vocês verão mais abaixo, a essência do que é contado por Okada, que nos narra a história em primeira pessoa, pode ser entendida a partir de diferentes pontos de vista, dos quais eu citarei três. E isso se levarmos em conta que o narrador é confiável, o que ele pode perfeitamente não ser.
O autor continua a empregar os seus truques que acabam colocando o livro em uma região cinza que se situa entre o mundo real e o fantástico. Por isso eu trouxe ele para o Ficções. Embora o autor tenha ótimos romances calcados na realidade como Norwegian Wood é quando ele deixa a sua imaginação correr solta que obtemos o seu melhor. E esse romance tem vários momentos bastante surreais. A primeira parte (o livro é dividido em três) possui o ambiente mais normal. É lá pelo final desta primeira parte que as coisas começam a ficar esquisitas principalmente a partir do aparecimento das irmãs Kanô, Malta e Creta. Então o que eu entendi (e isso não é spoiler) é que existe uma espécie de mundo que se situa um pouco acima do nosso. Algumas pessoas parecem estar sintonizadas e possuem maior facilidade para alcançá-lo. O que esse outro mundo é capaz de fazer com as pessoas não ficou muito claro para nós. Fato é que determinadas situações que acontecem neste outro mundo possuem certas influências físicas ou psicológicas sobre os personagens.
No que diz respeito à composição da história, preciso dizer que fiquei impressionado com como Murakami consegue impor ritmos distintos à sua narrativa. As três partes de Crônica do Pássaro de Corda possuem escritas e objetivos diferentes. Na primeira parte vemos o cuidado do autor em deixar o pé bem travado e nos apresentar os personagens e seus respectivos cotidianos. Os capítulos são mais longos e voltados para a descrição do ambiente e dos personagens. É aqui que Murakami constrói a nossa empatia pelos seres que ele coloca em seu mundo. A relação de Toru e Kumiko recebe bastante atenção porque vai ser a partir dela que as bases da narrativa principal se centram. Quase todos os personagens tem um capítulo dedicado a contar a sua história e se apresentar para o público: May Kasahara, Noboru Wataya, Malta Kanô, a primeira parte de Creta Kanô, o senhor Honda... até como Toru e Kumiko se conheceram e enfrentaram a rejeição da família dela.
Já a segunda parte temos o primeiro acontecimento impactante que vai fazer a narrativa se mover adiante. O ritmo aqui fica ainda mais desacelerado já que o intuito é construir capítulos mais contemplativos. Toru precisa chegar a termos consigo mesmo e entender como ele se encaixa em seu mundo. Até aquele momento parecia que o personagem pegava carona em sua existência. As coisas que acontecem com ele o colocam em uma posição em que ele precisa fazer algo, sair da inércia. Mas, ele não sabe como fazer isso. Então esta segunda parte é uma longa digressão sobre "o que eu devo fazer" e "qual é o próximo passo". Somente quando ele se encontrar definitivamente é que a narrativa pode recuperar sua velocidade. E aí chegamos na terceira parte, que é a maior em quantidade de páginas (e não parece). Aqui parece que Murakami colocou um turbo na sua escrita e tudo acontece em uma velocidade assustadora. A ponto de os capítulos serem bem curtinhos e representarem mais cenas do que acontecimentos per se.
Os personagens criados por Murakami para esta narrativa são muito complexos e alguns chegam a se relacionar uns com os outros. Por exemplo, uma relação óbvia a fazer é entre Toru e May Kasahara. Ambos são pessoas paradas em suas próprias vidas. Não conseguem tomar um rumo específico para elas. May não deseja ir à escola por conta de algumas situações que aconteceram em sua vida enquanto Toru saiu da empresa de advocacia em que trabalhava. Ele sequer deseja tirar sua carteira da Ordem dos Advogados. Então, para onde ele quer ir? No começo eu achava May uma garota petulante e impertinente, mas à medida em que a narrativa ia passando eu percebi que a verdade é que ela apenas não conhecia nada sobre o mundo. May é o espelho de Toru quando ele perde a Kumiko no final da primeira parte. O que a May vive na primeira parte é o que Toru faz na segunda: ele se isola completamente daqueles que o cercam, deixando o mundo para trás. Sua solução para o problema foi fugir, o mesmo que May faz. Mas, o legal na narrativa do Murakami é como os personagens crescem e evoluem com o tempo e as ações. Eles realmente saem de um ponto A para um ponto B.
O mistério principal fica por conta da Kumiko. E o autor consegue segurar esse mistério praticamente até o final da história. No começo vemos como Murakami desenvolve a relação entre os dois protagonista. Sim, eu considero a Kumiko também uma protagonista, embora o autor faça um truque de prestidigitação com ela. Se ele não tivesse feito toda aquele preâmbulo, o sumiço dela e suas ações não teriam o mesmo impacto sobre o leitor. Os mínimos detalhes acabam fazendo parte do quebra-cabeças: a água viva, a rotina de trabalho, a casa, o comportamento ora indiferente, ora intempestivo. Quando tudo estoura, no começo tomamos um choque, mas em seguida vamos juntando as peças ao lado de Toru.
E afinal, que casal se conhece por completo? 100%? Sempre temos aquela parte de nós que escondemos do mundo e dos nossos parceiros. Às vezes são pensamentos, podem ser segredos. Procuramos ser o mais honestos possíveis, mas uma parte de nós deseja manter aquele espacinho onde somente nós podemos entrar. Aquele pequeno terreninho em que mesmo o casamento não pôde alcançar. É nesse pequeno espaço que a narrativa de Murakami acaba agindo. E Toru não é de todo inocente na história já que ele mesmo admite ter tido ocasiões onde ele se colocou em uma situação dúbia. Até acho que a Kumiko foi bem tranquila (até demais) quando recebeu a notícia. O autor trabalha alguns momentos que são emocionalmente terríveis. Cito dois que tocaram em particular em mim: a carta deixada por Kumiko e todo o simbolismo por trás da presença de Toru no fundo do poço.
Podemos interpretar toda a narrativa a partir de três pontos de vista:
1 - Tudo aconteceu de verdade e mesmo as partes sobrenaturais estavam inclusas. Nesse sentido acreditamos na narração de Toru e consideramos seu testemunho de confiança.
2 - Toru está mentindo e nos dando apenas meias informações sobre o que aconteceu. Aqui a gente entende que o protagonista encontrou em Noboru Wataya alguém que realizou mal feitos, mesmo sabendo que ele também contribuiu para tudo o que aconteceu com sua apatia e indiferença. Sabemos que Toru ama Kumiko, mas o casamento dos dois já havia se tornado uma rotina incessante de ações repetidas. E o narrador conta isso da maneira mais mecânica possível ao longo da primeira parte. Quando Kumiko se vai, Toru busca um bode expiatório.
3 - Toda a parte sobrenatural é um mecanismo de defesa emocional do Toru para lidar com o sentimento de perda. Os trechos que acontecem no sobrenatural são todos ignoráveis e precisamos entender a ida ao poço como uma espécie de reset na vida dele.
Outro ponto que muito me agradou foi a exploração da guerra pela visão dos japoneses que se encontravam na Manchúria. Isso nós vemos através da história do senhor Honda e do primeiro-tenente Mamiya. O lado japonês da guerra nos é pouco conhecido e me lembro que só tive a oportunidade de ver mais quando assisti ao filme Cartas para Iwojima. No livro, somos colocados na região da Mongólia e no norte da China e o quanto a batalha foi suja e cruel. Os soldados japoneses já se encontravam desmotivados, principalmente por causa dos frequentes ataques dos cavaleiros mongóis. A cena da tortura feita por Bóris é de embrulhar o estômago. E depois quando a cena se volta para a prisão presenciamos toda a decadência do ser humano e o desespero dos japoneses que se tornaram prisioneiros de guerra.
Crônica do Pássaro de Corda é uma narrativa repleta de camadas. Seria possível conversar por horas a fio sobre tantos temas diferentes que explodiria as cabeças de todos. Pode até ser um livro intimidador e lento no seu desenvolvimento. Mas, é de uma profundidade única. Você sabe quando está lendo Murakami. A escrita é peculiar demais. Venci esse desafio de leitura e convido a todos a fazerem o mesmo. Vale a pena.
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