Alan Martins 18/02/2018
Edição linda, mas peca na tradução
Título: Medo clássico, vol. 1
Autor: H. P. Lovecraft
Editora: DarkSide Books
Ano: 2017
Páginas: 384
Tradução: Ramon Mapa da Silva
Veja o livro no site da editora: http://www.darksidebooks.com.br/hp-lovecraft-medo-classico-vol-1-miskatonic-edition/
“A coisa mais misericordiosa do mundo, penso eu, é a inabilidade da mente humana em correlacionar todo o seu conteúdo”. (LOVECRAFT, H. P. O chamado de Cthulhu. In: Medo clássico, vol. 1. DarkSide Books, 2017, p. 118)
O terceiro volume da coleção Medo Clássico, publicada pela DarkSide Books, chegou às livrarias no final de 2017. Trata-se de uma antologia de contos de H. P. Lovecraft, organizados em uma bela edição (como a editora sempre faz). Mas, nesse caso, um provérbio mostra-se bastante verdadeiro: “beleza não se põe à mesa”.
MOVIDO PELOS PESADELOS
Howard Phillips Lovecraft (1890 – 1937), foi um escritor estadunidense, um dos maiores e mais influentes da ficção de horror. Seu sucesso chegou tarde, mas cresceu com o tempo, principalmente após sua morte. Escreveu para revistas pulp, que publicavam contos conhecidos como weird fiction. Os autores que escreviam para tais revistas eram considerados menos habilidosos em técnicas literárias, o que não era o caso de Lovecraft, ou o de seu grande amigo Robert E. Howard.
Hoje, as influências de Lovecraft estão em todo lugar: na literatura, nas músicas, nas séries, nos filmes e nos videogames. Boa parte de seus contos derivam de pesadelos ou de medos pessoais, o medo do desconhecido. Aquilo que não conhecemos sempre nos causa um certo receito, ou até mesmo pavor. Nisso Lovecraft acertou. Uma outra característica do autor é o horror cósmico, que se relaciona ao medo do desconhecido, pois não sabemos o que os cosmos guardam, se há vida extraterrestre. Esse medo retira toda a superioridade do ser humano, evidenciando nossa inferioridade ao universo.
“Não tento, senhores, explicar aquela coisa – aquela voz – nem posso me aventurar a descrevê-la em detalhes, pois as primeiras palavras levaram embora minha consciência […]” In: O depoimento de Randolph Carter, p. 98
O AUTOR DE CONTOS CURTOS
Essa coletânea apresenta nove contos, alguns curtos, outros longos. Com essa leitura, fico com a impressão de que Lovecraft foi um grande autor de histórias curtas, pecando muito quanto escrevia algo longo. ‘Nas montanhas da loucura’ e ‘A sombra vinda do tempo’ são dois contos longos presentes nesse livro, e foram leituras carregadas, lentas. São narrativas em forma de um grande relato (em primeira pessoa) sobre algo que aconteceu com o narrador. Não são histórias de terror, são grandes aventuras exploratórias, e com muitos detalhes que deixam a leitura lenta (me peguei fechando os olhos em alguns momentos).
A maioria dos contos de Lovecraft são em primeira pessoa e em forma de relatos, sem diálogos, apenas a descrição do que ocorreu. Por um lado, isso pode ser chato, deixando o conto monótono, mas funciona bem em outros casos, como nas histórias mais curtas, que cumprem muito bem o seu papel.
Dentre os nove contos presentes, o que mais me agradou foi ‘Herbert West: Reanimator’, uma história de zumbis, talvez uma das primeiras a fazer sucesso. A situação e a atmosfera criadas por essa narrativa surpreendem, ainda mais por ser um conto sem muitas pretensões. Já outros, como ‘O chamado de Cthulhu’ (a história mais famosa de Lovecraf), não foram leituras muito divertidas, ficando presas em grandes relatos e detalhes. Há as partes boas e interessantes, porém a forma em que tudo é narrado não ajuda.
“Como a maioria dos jovens, ele se deliciava em elaborados devaneios de vingança, triunfo e o magnânimo perdão final”. In: Herbert West: Reanimator, p. 60
RACISMO COMO UM ELEMENTO DO HORROR
Muitos críticos afirmam que Lovecraft foi um autor racista. Fica difícil defendê-lo quando está explicito em suas obras esse pensamento sobre superioridade racial. Em ‘Herbert West: Reanimator’, o autor compara um personagem negro a um símio. É interessante notar que a edição da Martin Claret, que já apresentei aqui no blog, modificou essa comparação, a fim de amortecer essa característica preconceituosa. Já essa edição da DarkSide Books manteve o texto sem modificações, acrescentando notas de rodapé para explicar o preconceito do autor.
Lovecraft possuía medos, como o medo de estrangeiros, de negros e de lugares desconhecidos. Cresceu com uma visão aristocrática, além de ter sido um autor recluso, que não viajava muito. Isso reflete-se em seus contos, nesse medo do desconhecido, onde negros passam-se por monstros, estrangeiros não são bem vistos e povos aborígenes são tratados com inferioridade, por termos pejorativos.
Vale observar que pessoas brancas, com características nórdicas, eram, geralmente, retratadas pelo autor como seres com superioridade intelectual, mesmo que fossem vilões. São medos e preconceitos de um homem recluso, que não conhecia o mundo além daquele que o rodeava. Quando você desconhece algo, sente medo, tenta se afastar. Ainda bem que a literatura atual já quebrou muitas barreiras do preconceito.
“O negro foi nocauteado, e um breve exame nos revelou que ele assim ficaria permanentemente. Ele era uma coisa grotesca, parecida com um gorila, com braços anormalmente longos que eu não podia evitar chamar de patas dianteiras e um rosto que conjurava reflexões a respeito dos indizíveis segredos do Congo e batuques de tambor sob a lua pavorosa”. In: Herbert West: Reanimator, p. 67 – Comparação preconceituosa presente nesse conto.
SOBRE A EDIÇÃO
Temos aqui a edição mais bonita, de uma coletânea de Lovecraft, já publicada no Brasil até o momento. Livro em capa dura (com acabamento em soft touch e detalhes em baixo-relevo), páginas em papel off-white de boa gramatura, margens e diagramação de bom tamanho, acabamento na cor verde e uma fitinha para marcar as páginas.
Os contos presentes nessa edição são: ‘Dagon’, ‘A cidade sem nome’, ‘Herbet West: Reanimator’, ‘O depoimento de Randolph Carter’, ‘O cão de caça’, ‘O chamado de Cthulhu’, ‘Nas montanhas da loucura’, ‘A sombra vinda do tempo’, ‘A história do Necronomicon’.
Edição primorosa esteticamente, contando com uma introdução, escrita pelo tradutor, e alguns textos extras: um sobre Lovecraft e a cultura pop, outro sobre Lovecraft e Poe (escrito por Robert Bloch, autor de ‘Psicose’) e um relato do historiador Clemente Penna sobre caminhar na mesma cidade em que Lovecraft viveu. Além disso, a edição conta com ilustrações de Walter Pax e algumas de Robert Bloch. Ao final, a editora inseriu partes digitalizadas de originais de alguns contos presentes nessa edição.
Apesar de todos esses pontos positivos, o livro possui um ponto negativo que pesa muito: a tradução. Ramon Mapa da Silva, o tradutor, é um grande fã de Lovecraft e possui grande conhecimento sobre sua obra. Entretanto, a tradução me pareceu um tanto quanto literal em algumas partes e Ramon escolheu palavras duvidosas para compor seu trabalho, podendo até provocar uma interpretação errônea. Não digo que é uma tradução ruim, mas está longe de ser boa, com muito uso de sinônimos, que talvez não fossem os mais adequados para o contexto dos contos. Mas o fato principal é que os contos são enfadonhos, aí não tem tradução que ajude.
“O fim está próximo. Ouço o barulho à porta, como se um enorme corpo escorregadio investisse contra ela”. In: Dagon, p. 27
CONCLUSÃO
Em geral, os contos não me agradaram. Por serem longos relatos de algo que aconteceu, a leitura torna-se monótona e arrastada. Não há medo, nem grande horror, são apenas narrativas de grandes aventuras de exploração. A seleção dos contos gira em torno dos mitos de Cthulhu e do Necronomicon, o livro amaldiçoado. Lovecraft foi um bom autor de histórias curtas, mas pecava ao escrever histórias longas. Os grandes relatos e detalhes das explorações, como em ‘Nas montanhas da loucura’, quase me fizeram dormir. Esteticamente, o livro é lindo e conta com vários extras legais. Mas, como o que mais importa em um livro é o seu conteúdo, aí a casa cai, pois não são contos muito empolgantes, sem falar na tradução duvidosa, que possui alguns defeitos. Talvez seria melhor se a editora investisse mais em melhores traduções do que em marketing, na parte física de seus livros.
“O homem é tão acostumado a pensar visualmente que quase me esqueci da escuridão e imaginei o corredor infinito de madeira e vidro, em sua monotonia cravejada de arrebites, como se pudesse vê-lo”. p. 38
Minha nota (de 0 a 5): 3,5
Alan Martins
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