Paulo 29/07/2018
Araruama foi um dos primeiros projetos que eu apoiei no Catarse. Quando vi a proposta apresentada pelo Ian Fraser imaginei ser uma jogada arriscada. A gente fica pensando: "ou vai dar algo muito bom ou vai dar algo muito ruim". Fico feliz de que tenha sido o primeiro caso. Já comentei algumas vezes o quanto os escritores nacionais precisam olhar com mais carinho a nossa própria cultura. Mas, não digo isso porque quero ver centenas de histórias baseadas no Brasil colônia ou em lendas indígenas. Por que não pegar essas lendas e histórias e criar algo novo? É isso o que Fraser faz. De uma forma muito inteligente.
Inicialmente eu tive um estranhamento na escrita de Araruama. Isso porque o livro é bem fora da curva e várias das opções criativas que o autor fez foram para favorecer sua forma de contar a história. Esta segue quase que um padrão mítico na sua apresentação. Se vocês tiverem a oportunidade, leiam histórias mitológicas; elas se parecem muito com a escrita do Fraser. Aquela sensação de algo além do normal, que ultrapassa os nossos sentidos. É como se os personagens fizessem parte de algo maior. Quando uma majé fala a um mitanguaríni somos capazes de perceber a sabedoria presente nas suas palavras. Que aquilo que está sendo passado não vai ser compreendido no exato momento por ele, mas que vai ser de alguma utilidade no futuro. Depois que eu me assentei na escrita, esta passou a fluir muito bem. Já havia me acostumado com as passagens, as falas e os momentos transcendentais quando a história se encerrou. E eu queria mais.
A narrativa emprega Pontos de Vista (os famosos POVs popularizados por George R.R. Martin). Estas alternam entre os cinco jovens: Kaluanã, Eçaí, Apoema, Obiru e Batarra Cotuba. Cada um deles tem sua própria jornada a ser completada neste princípio de série até chegar ao ponto onde o autor quer para realizar a virada para o segundo volume. A ideia é encaminhar a todos em direção ao Turunã, que é uma espécie de ritual de passagem rumo a vida adulta. Só vou chamar a atenção em relação a um aspecto narrativo que posteriormente o autor até ameniza: de vez em quando temos dois POVs coexistindo em um mesmo capítulo e não há uma transição clara entre eles. Principalmente nos capítulos onde Obiru e Kaluanã coabitam. Às vezes essa passagem ocorre de um parágrafo para o outro. Há de se ter atenção neste sentido para não causar alguma confusão no leitor.
"O mitanguariní fechou os olhos e concentrou-se no silêncio. O mundo começou a fechar-se, e a esfera do campo sonoro diminuiu ao tempo que as cigarras não cantavam mais e ele não escutava mais os cajus caindo ou o voo das garças. E quando o mundo se resumiu à mudez de sua concentração, o menino deixou-o crescer um punhado."
Outro ponto que alguns leitores podem se enrolar um pouco é a curva de aprendizado. São tantas coisas novas que o autor introduz na narrativa que é preciso um pouco de tempo e paciência. Essa é uma vulnerabilidade e um ponto de força da narrativa. Ao mesmo tempo em que eu me preocupo com o fato de haver muitos conceitos novos, me alegra ver que que o autor saiu do comum e buscou algo seu. Não há como aliviar nesse sentido porque de fato é algo a se perceber. Este primeiro volume também sofre com a síndrome do primeiro volume, mas também é natural. Sem as informações necessárias para compor o universo literário, não há como avançar na história. Só acho que a história poderia ser um pouquinho maior neste primeiro volume para que o autor pudesse apresentar seus conceitos de uma maneira mais amena. Mas, novamente: nesse ponto são mais escolhas do que necessidades.
Cada personagem tem sua jornada e esta se liga muito com a história maior por trás da série. Um dos temas que é muito legal de ver transparecer é a relação diferente que as comunidades tem para criar seu status social. Uma pessoa é importante de acordo com a quantidade de aman paba (tempo de vida) que ela possui. Pode ser um chefe, um caçador, um herbalista. Ou seja, o que diferencia e hierarquiza as pessoas não é a quantidade de terras que ela possui (já que estas são coletivas) ou de riqueza (não tem valor monetário específico aqui já que são realizadas trocas). Fica aquela reflexão de que o homem sempre vai buscar formas de criar classes sociais. Aqueles que possuem pouco aman paba são marginalizados, conhecidos como capanema. Um dos personagens da narrativa é justamente um capanema nascido como filho de um abaete, uma espécie de chefe de uma comunidade. O pai de Obiru sente vergonha de seu filho por ele ser um capanema. É nesse dilema de alguém tentando recuperar seu prestígio ao mesmo tempo em que descola sua imagem da de seu filho que vamos ver a angústia no coração de Obiru. No início ele vê aquilo como sendo o seu castigo e como algo natural dentro daquele universo onde ele vive. Aos poucos ele vai se questionando se não existe um algo mais para ele.
Por outro lado, Eçaí não se importa muito com as convenções sociais. Sua relação com a natureza é tão forte que estas convenções o incomodam. Ele gosta de viver sua vida livremente e à sua maneira. Claro que existe uma explicação sobrenatural para isso, mas é curioso perceber como uma pessoa que questiona o status quo enxerga o mundo como algo completamente alienígena. Não se sente capaz de se encaixar dentro dos padrões fechados.
Temos também o surgimento de um novo tipo de fazer a guerra com Apoema. O legal é perceber como uma pequena descoberta é capaz de mudar toda a dinâmica de uma tribo. Ian poderia ter explorado um pouco mais essa dissonância entre o fazer combate antes e o depois. O engraçado disso é que eu imaginei que seria uma tecnologia e na verdade foi outra (não vou comentar para ver se vocês também tomam uma rasteirinha básica). A própria maneira como Apoema passa a realizar seus combates é extremamente eficiente, mas mal vista entre seus companheiros que possuem um código de combate específico. Porém, quando esta tecnologia se faz necessária para a defesa da vila, os códigos acabam sendo jogados para o alto em prol de derrotar os adversários. Esse tipo de reação é muito semelhante à invenção da gatling gun (a metralhadora de repetição) na Primeira Guerra Mundial. Ela era considerada uma arma desonesta por outros povos. Mas, a necessidade de impor o seu poder diante dos seus adversários acabou por suplantar os receios dos antigos combatentes que passaram a adotá-la.
Tem vários assuntos a serem tratados nesta resenha, mas sinto que ela está ficando longa. Gostaria apenas que vocês dessem uma oportunidade a este livro que é de alta qualidade. Ian tem uma escrita muito acima da média e chegou com o pé na porta com o seu livro de estreia. A proposta toda por trás de Araruama é muito ousada e por isso que fez os meus olhos brilharem. Gosto quando o autor se arrisca e produz algo fora do comum. Por essa razão, eu aplaudo o esforço dele em produzir Araruama. E já apoiei o segundo volume porque eu quero continuar nessa aventura.
site: www.ficcoeshumanas.com