mpettrus 01/12/2023
A Tragédia Moderna da Corrupção
?Para quem perdeu um pedaço de si na Kiss, todo dia é 27.?
?O brutal caso do incêndio na boate Kiss e suas 242 vítimas fatais ainda está bem vivo na memória dos brasileiros, mesmo uma década após o ocorrido. A chocante madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 que abalou o Rio Grande do Sul, ainda sofre com os fantasmas dessa tragédia anunciada.
? Em 2013, em Santa Maria, aproximadamente às 02h30min da madrugada, um incêndio ceifou a vida de 242 jovens e feriu 636. As investigações rapidamente determinaram que não foi um acidente, mas uma violação dos códigos de segurança, provocando a segunda maior tragédia no Brasil em número de vítimas de um incêndio.
? O incêndio começou no show da segunda banda a se apresentar naquela noite, ?Gurizada Fandangueira?, que utilizava artefatos pirotécnicos.
No entanto, outros problemas de segurança, incluindo espuma de isolamento acústico fora do padrão, extintores com defeitos, portas trancadas pelo lado de fora e a superlotação do ambiente, causaram uma fatalidade noturna, uma vez que, além de se espalhar rapidamente, a combinação de fogo e espuma provocou uma fumaça venenosa, cheia de cianeto.
? O fogo está longe de ser o único problema da tragédia. Muitos dos frequentadores da boate foram envenenados pelo monóxido de carbono, mesmo gás usado nas câmaras de gás em Auschwitz, a maioria dos corpos foram achados dentro do banheiro da boate.
Alguns jovens morreram ao tentar ajudar as vítimas, entrando na boate novamente sem saber do perigo do envenenamento através da fumaça, profissionais que ajudaram no resgate também tiveram problemas de saúde.
?A narrativa adotada pela autora é cuidadosa, sensível e, por vezes, bastante dolorosa. Dividido em 16 capítulos, acompanhamos as diversas nuances do fogo na vida das vítimas, dos familiares e amigos que nos envolve nos emociona e nos indigna.
Porque, por ser um livro-reportagem, essa é a grande intenção da autora. E, creio eu, foi uma escolha bastante acertada.
? Outra observação a ser feita é que todos os depoimentos estão situados sob o ponto de vista dos envolvidos na tragédia. São relatos carregados de sofrimento e saudade. Das vítimas temos oportunidade de conhecer parte de suas histórias.
A tônica da obra é construída a partir de uma dinâmica que nos insere em diferentes perspectivas do acontecimento a partir dos olhos dos profissionais de resgate, dos médicos do atendimento, dos familiares das vítimas e dos sobreviventes.
? O livro me rendeu passagens memoráveis, embora tristes e trágicas, das quais jamais esquecerei. O segundo capítulo, ?A Sinfonia da Tragédia?, foi onde eu literalmente desabei em lágrimas.
Os tantos celulares dos mortos, que tocaram por toda a noite, alguns mais de 150 vezes, cujas ligações nunca foram atendidas é destruidor. Mas o oitavo capítulo, ?Embarcando o Filho? é dilacerante.
? Quando a mãe, dona Fátima, se dirigiu as funcionárias da companhia aérea dizendo ?Cuidem bem do meu filho. Protejam-no. Ele vai ficar aqui com vocês?, e ninguém conseguiu dizer nada, apenas choraram, é visceral demais.
Dona Fátima era mãe de Rafael, que completaria 32 anos dia 28 de janeiro em Santa Maria. Seus pais se despediram do filho no dia 24 de janeiro no aeroporto de Guarulhos. Ele era o filho caçula, morava em São Paulo, mas era um aventureiro, um andarilho pelo mundo.
? O livro-reportagem é muito bem escrito a partir dos depoimentos dos sobreviventes da tragédia. Mas, sinto que ficou devendo a parte mais importante da reportagem: as denúncias.
O processo que está correndo na justiça contra os donos da boate e possíveis responsáveis pela tragédia, citando até o ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, não é tratado de maneira aprofundada. A autora não busca os responsáveis ou se exime de fazê-lo, nem apresenta fatos investigativos que levem o leitor a chegar a sua própria conclusão.
? São vários os fatores envolvidos no funcionamento irregular da boate, incluindo liberações incorretas que vão desde integrantes do Corpo de Bombeiros até os políticos mais influentes, portanto, é um caso que segue até hoje, sempre havendo recurso antes que a condenação de fato ocorra.
Também faltou uma denúncia da obstrução da justiça por parte de pessoas influentes e da dificuldade e sofrimento daqueles que dão tudo de si para que ela seja realizada ao longo desta década. A corrupção moderna escancarou suas tragédias ceifando vidas inocentes por conta de sua ganância e irresponsabilidade social.
? A ferida já está aberta, então porque não ser mais elucidativa sobre as questões judiciais na esperança de que assim tudo isso possa finalmente ser fechado?
As vítimas nunca voltarão à vida e as suas famílias nunca superarão a sua dor, mas talvez, ao expor as falhas da justiça neste caso, os envolvidos possam finalmente descansar e outra tragédia possa ser evitada. Infelizmente, percebi esse silenciamento voluntário por parte da autora.
? Entretanto, de maneira geral, considerei a obra da Daniela muito bem executada, bem escrita e planejada, pois um livro-reportagem demanda muita pesquisa e uma árdua investigação e colaboração de conseguir quem ajude o autor a remexer em feridas que estão longe de serem cicatrizadas. A autora foi muito além do que qualquer outro jornalista já havia conseguido falar sobre a tragédia.
? Tragédias dessa magnitude e proporções que perpassam a esfera individual e atingem a coletividade, precisam ser remexidas para serem evitadas no futuro. E as feridas dos sobreviventes que sobraram desses tristes episódios precisam passar por procedimentos médicos para se fecharem, pois, elas não fecham se você as esconde.
E, às vezes, mesmo que você as coloque sob a luz mais potente que existe, feridas assim jamais irão se fechar para aqueles que ficaram e que certamente, preferiam mil vezes ter morrido com seus entes queridos e amados.
??Pela Justiça. Pela memória. Para que isso nunca mais aconteça?.