Flávia Menezes 26/12/2023
O SABER É A SUBMISSÃO DA ESSÊNCIA DA VIDA ÀS LEIS DA RAZÃO.
?Guerra e Paz? é um romance histórico que foi escrito pelo autor russo Liev Tolstói, publicado no Russkii Vestnik, um periódico da época, entre os anos de 1885 e 1869, e é considerado uma das obras mais volumosas da história da literatura universal.
Narrando a história da Rússia à época de Napoleão Bonaparte (em especial, durante o período das guerras napoleônicas), o romance é dividido em 4 livros mais epílogo.
Quando vi essa parte final, do epílogo, eu fiquei me perguntando que tanto mais o autor tinha a dizer depois de tantas páginas. Mas ao encerrá-lo, foi como se uma trava ouvesse sido tirada dos meus olhos, me ajudando a enxergar tudo o que eu não havia enxergado até aqui com tanta clareza.
Foi quando percebi o motivo pelo qual eu sempre respondia com tanta convicção que, apesar de não ter tanta conexão com a história, algo me dizia que eu devia prosseguir até o final.
Referente a isso, só posso dizer que nunca foi teimosia, mas sempre foi sexto sentido!
Mas de fato durante a leitura do romance, nesta parte inicial de um Tolstói historiador, tirando alguns momentos em que seus personagens me impressionaram ou me tocaram de alguma forma, eu não consegui sentir todo este fascínio pela história, o qual eu via algumas pessoas falando sobre.
Claro que muito da minha dificuldade em mergulhar em toda a magnitude desta história, se deveu parte a uma inexperiência em Tolstói (eu certamente deveria ter lido mais livros pequenos dele, antes de iniciar essa leitura), e por pura ignorância mesmo (eu reconheço!) do contexto sócio-histórico da Rússia nesta época.
Mas apesar de conhecer meus entraves e limitações, durante a leitura havia essa pergunta que girava constantemente na minha mente, a qual eu não conseguia calar: ?O que o Tolstói está tentando me dizer com esta história?? Uma pergunta que, quanto mais eu me aproximava do final, mais eu desistia de vê-la respondida.
Isso até chegar no epílogo, que surgiu diante de mim não apenas respondendo a minha pergunta principal, mas também a uma série de outras questões que me acompanharam ao longo desses quatro meses e vinte e quatro dias de leitura (com uma sensação semelhante àquele famoso meme do Titanic: Já faz 84 anos!).
Antes de falar sobre esse epílogo, eu preciso dizer que Tolstói nos apresenta uma diversidade de personagens onde, enquanto alguns nos despertam empatia, já outros, nos farão sentir uma intensa repulsa, especialmente aqueles que refletem os pensamentos e atitudes da alta sociedade da época, e que não nos pouparão incômodos com seus comportamentos excessivamente fúteis e vazios.
Porém, entre esse ?amor e ódio?, esta história complexa e desenvolvida com uma presteza de detalhes que apenas um escritor-artista é capaz de conceber, ora estamos diante do ambiente de guerra e das suas inevitáveis fatalidades, ora estamos acompanhando a vida dos seus personagens, sentindo como o efeito da guerra os atinge e vai definindo seus destinos.
Confesso que por muitos momentos eu me sentia irremediavelmente entediada, em especial nas partes da guerra. E isso não acontecia por motivos dos detalhes das descrições, mas sim pela narrativa que assumia um tom muito diferente, de uma arrogância e frivolidade, tornando perceptível a diferença dos efeitos da guerra para aqueles que comandam, daqueles que estão diante da linha de frente.
Em outros momentos, o que muito me entediou, foram os constantes histerismos e futilidades das mulheres mais jovens, e da inconstância de atitudes por parte dos homens no que se refere aos compromissos que assumiam com essas jovens. Claro que existe um contexto de época, mas Tolstói potencializa cada característica para nos provocar, nos instigar?e de fato, reagimos!
Mas quanto a isso, o que aprendi com Tolstói em ?A morte de Ivan Ilitch? é que seus personagens são viscerais, e isso quer dizer que vão nos proporcionar incômodos porque suas atitudes mundanas nos levarão ao limite da paciência. Porém, não é disso que o nosso dia a dia é feito? De pessoas reais repletas de defeitos e mesquinharias que muitas vezes testam os nossos limites?
Apesar de toda a dose de realismo que compõe este trabalho tão minucioso e impecável, eu confesso que já não via a hora de chegar ao final. Mas quando veio o epílogo, consturando e explicando tudo, eu já não queria que acabasse tão cedo!
Abandonando a face do historiador, para nos apresentar um novo Tolstói, vestido como um exímio pensador e filósofo, as suas reflexões finais foram a cereja do bolo, mais parecendo um ?Memória do Subsolo? (do Dostoiévski) ao contrário: onde primeiro ele (Tolstói) nos conta a história, para depois nos levar a uma reflexão mais profunda da vida e do ser humano.
Nesta parte, era como se Tolstói tivesse ouvido meus pensamentos, vindo ao meu socorro para responder às minhas constantes dúvidas e questões, me ajudando (inclusive!) a compreender aquela minha questão inicial: ?O que o Tolstói está tentando me dizer com esta história??
Ser um escritor que se debruça a narrar fatos históricos, não é nada fácil, e no epílogo, Tolstói nos dá uma aula que vai desde o papel do historiador, até as motivações que fazem com que os eventos históricos aconteçam.
Tenho que dizer que é bela e empolgante a forma como Tolstói vai tecendo as suas reflexões sobre a influência que o historiador tem ao fazer História (enquanto ciência), o que muito me lembrou das reflexões do livro ?Os Intelectuais e a Sociedade?, de Thomas Sowell.
Porém, um evento histórico precisa ser contado, e foi aí que eu compreendi que Tolstói não queria que eu entendesse a história através do seu ponto de vista. Mas o que ele queria mesmo era me apresentar os fatos ocorridos, e me lembrar que não existe neutralidade em momentos como esse. Que não há como explicar porque as guerras e rebeliões realmente acontecem, mas que é possível falar de tudo o que influencia a sua ocorrência. De que a liberdade é relativa, resultando na nossa irremediável obediência aos acontecimentos que permeiam o determinismo histórico (que ele tanto acreditava).
Tolstói mergulha com tanta autoridade na essência do ser, nos tirando de onde estamos, para refletirmos sobre a sua visão fatalista da História, que não há como não sentir fascínio pela forma como ele construiu todo esse romance até chegar no epílogo, e nos explicar ponto por ponto do que ele havia narrado até aqui. E eu tenho que dizer que eu o acho um verdadeiro danadinho, porque chegar no epílogo nos faz ter vontade de reler toda a história, apenas para rever tudo com esse novo olhar que surge após esse momento de tão profunda reflexão.
Tolstói é um gênio, e o que ele fez neste romance é algo que vai muito além de narrar fatos históricos. Ele permeia a essência por trás de cada personagem histórico que a compõe, e nos mostra tanto a sua importância quanto a sua irrelevância, quando percebemos que eles não definem com exatidão o povo para quem eles governavam e tomavam decisões que inclusive afetaram profundamente muitas vidas neste espaço de tempo em que essas pessoas existiram.
Aliás, essa relação do tempo e do contar uma história, é algo que Tolstói faz neste epílogo, nos colocando diante não apenas do que ele trouxe neste romance, mas indo muito além, nos fazendo pensar em como a nossa própria vida se dá na atualidade.
Não posso dizer que esta foi uma leitura prazerosa, porque confesso que ela realmente não foi. Mas é certo que ao final, e em especial após este epílogo, eu não posso deixar de declarar toda a minha admiração por uma obra que certamente mudou a minha forma de ver a vida, tanto quanto de ler histórias, sejam elas de ficção, ou de romances históricos como esse.