spoiler visualizarJadiel 24/07/2020
Uma intensa história de amor contaminada por um imaginário desnecessário de excessiva violência masculina
Resolvi ler esse livro depois de assistir a série, pois queria saber como a história se desenrola após seu fim abrupto (vulgo: censura). Gostei do estilo da série e da complexidade da relação das personagens (bem como a inegável química e talento dos atores). Apesar da relação dos personagens e principalmente do temperamento e algumas ações de Gu Hai terem me incomodado, a dinâmica dos dois pareceu menos idealizada e mais complexa. Cenas de assédios constantes de Gu Hai são bastante desconfortáveis, mas trazem uma faceta até interessante para a história.
No versão literária, essa relação tóxica toma contornos ainda mais intensos. Se na série, o ator que interpreta Gu Hai conseguiu tornar o personagem carismático apesar de suas ações, no romance, não consegui conter um sentimento de revolta com seus comportamentos, pois há uma intensificação de suas atitudes abusivas, que em alguns momentos tomam contornos eróticos e instigantes, mas expressam uma fantasia problemática do imaginário feminino quanto à masculinidade e à relação homoerótica. Há uma erotização fantasmática que liga violência ao amor masculino de forma quase glamourizada e isso me incomodou. A concepção feminina dessa masculinidade leva a autora a tratar violência sexual como uma essência do amor masculino. Se, por um lado, essa faceta torna Gu Hai desagradável (o arquétipo do menino rico mimado que não considera a repercussão de seus atos e não sabe ouvir "não", pois está acostumado a ter tudo que quer devido a sua condição social), por outro, poderia tornar o personagem complexo e multifacetado, o que seria interessante. Mas o grande problema é que não há mudança significativa no comportamento ou evolução da personagem, muito menos um tratamento psicológico sério dessa questão e a impunidade de seus atos danosos reitera um elitismo classista e uma naturalização bizarra de toxidades masculinas.
As cenas de jogos de poder do começo do livro são interessantes, mas são usadas em demasia como um fim em si e não como um recurso para trabalhar o desenvolvimento do personagem. Ainda assim, a autora encontra momentos de ternura e as melhores passagens são quando esses jogos são performados de forma igual e Gu Hai baixa a guarda; quando os garotos descobrem seus corpos e intimidades juntos, quando a agressividade é mais uma encenação, uma forma excitante de brincadeiras eróticas descritas de maneira descontraída e extremamente sensual. O problema é que na maioria das vezes não é isso que acontece, ou, se começa assim, desboca puramente no abuso. O prazer de um vem às custas da dor do outro quase sempre. Quando a questão do sexo anal é colocada, só se descreve sentimentos de dor e humilhação de um e o êxtase de outro. Não há forma de conciliar os prazeres. Que ideal deturpado de sexo gay é esse? Ouvi falar que esse clichê de comportamento é comum nesse tipo de história, o que desvela certos fetiches problemáticos da mulher heterossexual quanto ao erotismo das relações homossexuais. Pois se trocarmos o gênero de Bai Luo Yin - se ele fosse uma mulher, esse tipo de coisa nunca seria aceitável ou considerada amor. Agora, só porque é um cara, tá de boa? Que concepção esquisita de amor entre homens? E isso pra quê? Para alimentar um fetiche feminino bizarro sobre o homoerotismo?
Inclusive Bai Luo Yin só encontra sofrimento atrás de sofrimento, seja nas mãos de Gu Hai, de sua mãe, de sua ex-namorada, dos militares ou de seu padrasto. Ele me lembrou uma espécie de Justine sadiana, uma pessoa pura que só opera como mártir, vítima de perversidades. Por mais que haja uma maior profundidade em Bai Luo Yin, ele é tão estático em seu desenvolvimento e construção quanto Justine. Inclusive todo o imaginário dessa história carrega algo de sadiano não só em seu conteúdo como também em sua forma, que é cíclica, repetitiva, trazendo os mesmo cenários com intensidades cada vez mais violentas, o que o torna estagnado e falho narrativamente em alguns momentos. O componente sádico em si não é um problema, mas nem Sade é destorcido o suficiente para tratar as violências de seus romances como amor.
Antes da brutal e fatídica cena de estrupo, estava torcendo para que a relação dos dois se tornasse cada vez mais igual no decorrer do romance e para que Gu Hai se tornasse menos perverso e impulsivo. Estava esperando que houvesse possibilidade para um retrato mais positivo e terno que não confundisse possessividade e investidas predatórias com cuidado e amor e que explorasse possibilidades menos elitistas e de não-subjugação como possíveis dinâmicas eróticas também. Pois, como apontou Céline Sciamma, ao falar de seu filme "Retrato de uma Jovem em Chamas", não há nada mais erótico que explorar um amor horizontal que abandona as vicissitudes das dinâmicas de poder. Porém, o que ocorreu foi justamente o contrário e teve seu ápice na tal cena do estupro, o que foi extremamente frustrante.
Essas passagens fizeram a narrativa se tornar uma história de horror onde não resta mais afeto, somente violência. Essa guinada poderia ter sido interessante para mostrar que toda relação abusiva, antes de desabar para a completa violência, começa com pequenos abusos esparsos e pontuais intercaladas com ações românticas que mantêm a pessoa presa e inconsciente da destrutividade que a cerca. Tudo ali apontava para isso: o ciúmes patológico, a culpabilização da vítima, a possessividade, a violência física, a chantagem... Mas o que acontece? Bai Luo Yin perdoa Gu Hai depois de um tempo bravo com ele, perdoa-o como quem perdoa um vacilo, ou uma burrada; perdoa e volta com ele. Os dois mantêm a mesma relação de antes, Gu Hai intercalando entre comportamentos completamente psicóticos e agressivos com momentos de carinho e cuidado, mas esses momentos, se antes me arrancavam sorriso, agora só me davam um gosto amargo na boca.
Mesmo que a relação dos dois encontre momentos delicados e românticas com certa frequência após o episódio traumático e é descrita de forma cativante, não há como ignorar o que aconteceu, toda a beleza de passagens posteriores foi contaminada pela reminiscência daquele crime. Se ao menos certas cenas não existissem, eu seria capaz de ter sido totalmente tomado pela intensa relação dos dois, pois, em sua parte final, o romance realmente encontra uma forma de construir conflitos que não sejam relativos à destrutividade interna da paixão das personagens - quando o pai de Bai Luo descobre da relação dos dois - tornando a narrativa magistral em seus excessos e absurdos deliciosos dignos das melhores histórias de amor impossível. As passagens deles tentando se encontrar enquanto cativos na fortaleza militar foram ótimas, a cena de Bai Luo preso no túnel e de Bai Luo Yin tentando salvar o amante, bem como o maravilhoso suporte do pai de Bai Luo Yin fizeram o romance terminar de forma muito boa e que me fez gostar bastante de seu desenrolar, mas aqueles capítulos de sangue, violência e brutalidade desnecessárias infelizmente macularem essa história de amor deixando um gosto acre na boca difícil de ignorar.