Lígia Guedes 20/09/2010
FERA DE MACABU - CARLOS MARCHI
Extraordinária leitura, difícil é saber onde inicia o histórico e finda o romance ou onde inicia o fantástico e termina o real na empolgada prosa do jornalista Carlos Marchi que conta minuciosamente a condenação à morte de um rico fazendeiro em Macaé, no norte fluminense, vítima inocente de uma conspiração política, a tão conhecida saga de Motta Coqueiro. A propósito do fato, analisa detalhadamente a dura legislação penal brasileira do tempo do Império, as discussões sobre a pena de morte e reconstitui coloridamente o cotidiano das fazendas no rico norte fluminense, até os tempos atuais, como eram os casamentos, a vida dos escravos, o hábito de provocar abortos para não gerar escravos, as formas de bruxarias. Notável se revela o relato integral do encontro de Pedro II com o escritor Victor Hugo em Paris a quem tem grande admiração ao ponto de levar flores em seu túmulo pós-morte, acompanhando toda a literatura do autor, inclusive o livro aqui já mencionado aqui no blog Nós Todos Lemos, "O último dia de um condenado à morte".
"Enquanto os personagens da história viviam, sofriam e moriam, a pena de morte ainda vigorava oficialmente no Brasil, muito embora desde o momento em que alguém contou a Pedro II a verdadeira história de Úrsula das Virgens, nunca mais um homem livre tenha subido novamente os treze degraus da morte. O enforcamento de Manoel da Motta Coqueiro foi o ponto-limite das manifestações de intolerância nacional no século 19; depois dos enforcamentos de Flor, Faustino e Domingos, executados três meses depois de Coqueiro, o imperador, consternado por aquela modalidade estúpida de assassinato oficial, desmascaraa pela condenação injusta de Coqueiro, passou a comutar sistematicamente as sentenças máximas atribuídas a homens livres; logo depois ele já comutava as penas máximas aplicadas a escravos; por pior que fossem os seus crimes, o imperador sempre as transformava em penas de galés perpétuas."
Falando em último dia de um condenado à morte, o autor detalha com graça as felizes avançadas técnicas portuguesas do bem-morrer, copiadas pelos americanos em detrimento das peripécias inglesas na arte de enforcamento.
"O fazendeiro não era tão indigitado assim, pois.Tinha boas razões para agradecer a Deus e a D. Pedro I. Ao primeiro porque, com sua infinita generosidade, iluminou as autoridades e os carrascos no caminho da evolução, no sentido da extinção de todos os castigos cruéis estabelecidos pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas e na descoberta de novas tecnologias para a bem-morrer; ao segundo, porque foi seu braço terreno que determinou legalmente a extinção dos castigos perversos que toldavam de terror as execuções oficiais no Brasil. Não havia nada a reclamar, portanto. Poderia ter sido muito mais doloroso do que foi.
Se não fossem, naturalmente (e pela ordem),Deus e Pedro I."
A imprensa acompanha as investigações com estardalhaço e empresta a Coqueiro um apelido incriminador - é a Fera de Macabu. Pouco tempo depois do enforcamento descobre-se que o fazenderio tinha sido a inocente vítima de um terrível erro judiciário. Abalado, o imperador, um humanista em formação, decide que dali em diane ninguém mais será enforcado no Brasil.
"Quanto ao fantasma de Coqueiro, o principal e derradeiro personagem deste livro, continuou vagando errante pelas noites escuras da praça da Luz, até muito tempo depois de vencida a maldição dos cem anos, sempre envolto na mesma túnica branca e esvoaçante de pano grosseiro com que foi enforcado, revelam os melhores contadores de histórias de Macaé: quando o fantasma gemia urros ininteligíveis que só as almas penadas sabem proferir, ouvia-se também o lúgubre tilintar das correntes que pendiam de seus pulsos, há muito rompidas. Há quem granta que ainda hoje ele aparece, nas negras noites sem lua da praça da Luz, como um lobisomem eterno e inestinguível, para assustar os meninos que, como que, nasceram ali perto, estudaram no Colégio Estadual Luiz Reid e foram criados sob as penas da centenária maldição na heróica, leal e mui misteriosa cidade de Macaé."
A história de Motta Coqueiro, além de peça teatral, conforme detalha o livro Fera de Macabu, foi lançada no cinema em 2007 com o título de Sem Controle.
Carlos Marchi começou a atuar como jornalista em 1971, em pelnos anos de chumbo. Trabalhou em várias empresas jornalísticas,no Rio de Janeiro e em Brasília (Correio da Manhã, Última Hora, O Globo, Rede Globo, O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil, além de colaborar com dezenas de outras publicações). Teve intensa atividade política e sindical; em 1984, foi assessor da candidatura Tancredo Neves. Tem como marca original de seus trabalhos o olho clínico do repórter e o texto esmerado, além da visão de mundo humanista.