Retrato do Artista Quando Coisa

Retrato do Artista Quando Coisa Manoel de Barros




Resenhas - Retrato do Artista Quando Coisa


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Toni 18/04/2024

Leituras de 2023

Retrato do artista quando coisa [1998]
Manoel de Barros (1916-2014)
Alfaguara, 2022, 120 p.

Publicado em 1998, “Retrato do artista quando coisa” é um livro dividido em duas partes. A primeira leva o mesmo título do volume e a segunda se intitula “Biografia do orvalho”. Uma e outra parte, todavia, são introduzidas por epígrafes inventadas por Manoel de Barros, mas atribuídas a grandes nomes da literatura: Fernando Pessoa e Machado de Assis. É, portanto, por meio dessa leve impostura de ofício — a começar pela referência ao romance de James Joyce, “Retrato do artista quando jovem” — que este retrato se delineia: a partir de uma técnica que consiste em subtrair para fazer transbordar, Barros propõe a insurgência do banal, do comezinho, dos despojos sem sentido refeitos em despalavras, do silêncio corrompido que comunica o poeta.

Mais uma vez chacoalhando sintaxes e distribuindo pronomes oblíquos em verbos não reflexivos, Barros deixa claro que categorias gramaticais estanques e poesia têm muito pouco em comum: daí seus versos anunciarem com tanta leveza e tão pouco estranhamento que “um passarinho me árvore”, “os jardins se borboletam”, “folhas secas me outonam” ou “uma rã me pedra”. Neste exercício autorreflexivo, o poeta confessa seu “senso apurado de irresponsabilidades” e sua busca incansável pela “palavra incapaz de ocupar o lugar de uma imagem”. Entre desfazimentos e deslimites, o poeta, agora maduro, se revela na estrutura do orvalho e se comunica por encantamentos que os seus (e os nossos sentidos) produzem.

“Aprendo com abelhas do que com aeroplanos.
É um olhar para baixo que eu nasci tendo.
É um olhar para o ser menor, para o
insignificante que eu me criei tendo.
O ser que na sociedade é chutado como uma
barata — cresce de importância para o meu
olho.
Ainda não entendi por que herdei esse olhar
para baixo.
Sempre imagino que venha de ancestralidades
machucadas.
Fui criado no mato e aprendi a gostar das
coisinhas do chão —
Antes que das coisas celestiais.
Pessoas pertencidas de abandono me comovem
tanto quanto as soberbas coisas ínfimas.”
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moacircaetano 28/03/2024

Ler o Manoel é como ouvir uma canção numa língua em que a gente não entende muito bem...
A gente fica fascinado pelo ritmo, pela construção das frases, cantarola junto, entende um pouco, às vezes muito... mas tem sempre um mistério ali, o que faz com que tudo seja ainda mais lindo.
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Anderson 02/11/2023

A poesia manuelina às vezes se aproxima daquele tipo de composição que me afugenta, por parecer um tanto nonsense, experimental demais. Mas aí a gente tropeça num verso que é aquela beleza toda. Não há como não gostar de Manoel de Barros.
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Egberto Vital 18/06/2023

Como sempre, a leitura de Barros é um acontecimento.

É difícil sair de um livro de Manoel de Barros da mesma forma em que entramos. Não diferentemente de "Meu quintal é maior do que o mundo" e "Livro das Ignorãnças", em "O Retrato do Artista Quando Coisa" Barros nos entrega uma obra-prima tecida com o refinado fio da simplicidade e da singeleza.

Um dos maiores poetas do nosso país, sem dúvida, mas sem a necessidade de se colocar grandioso, Manoel vai ao rés-do-chão e cata desperdícios para escrever as suas sensibilidades.
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ana.vieira 05/11/2022

Sempre quis ler Manoel de Barros desde que vi um trecho de seu poema num texto da faculdade, me conectei imediatamente com meu eu da infancia, me recordei de quando dava vida e personalidade as coisas. Mas, sempre deixei a leitura pra depois, pra algum momento... enfim li, e gostei do tanto de abstrato que tem, me senti instigada.

O autor traz reflexões sobre o ser, a natureza e a civilidade. O ser no sentido do que se é enquanto pessoa e de ter a liberdade de falar, pensar, interpretar e criar as coisas a sua volta: seja um sentimento, uma pessoa, uma situação, uma palavra ou despalavra.

Há um conflito entre o ser integrado a natureza e o ser que foi civilizado, ja que a cidade e a rigidez dos tempos atuais nos cobra razão, exatidão, o real(?) sentido das coisas. Então ele encontra nas palavras a liberdade de ser e de criar:

"Só as palavras não foram castigadas com a ordem natural das coisas. As palavras continuam com seus deslimites."

Essa cobrança nos afasta de nossos instintos mais íntimos, poderosos e sagazes, e acredito que por isso Manoel diga que teve um êxtase ao ser chamado de primitivo.

Por fim, vou destacar um dos meus vários destaques neste livro:

"Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras."
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Alexandre Kovacs / Mundo de K 01/10/2022

Manoel de Barros - Retrato do artista quando coisa
Editora Alfaguara - 120 Páginas - Capa e projeto gráfico de Regina Ferraz - Imagem de capa de Martha Barros - Lançamento original 1998 / Relançamento: 2022.

Manoel de Barros (1916-2014) é o nosso eterno mestre da desimportância, um homem com "um senso apurado de irresponsabilidades" que nos ensinou com seus versos a enxergar de um jeito diferente as coisas simples da natureza: "Fui criado no mato e aprendi a gostar das / coisinhas do chão – / Antes que das coisas celestiais. / Pessoas pertencidas de abandono me comovem: / tanto quanto as soberbas coisas ínfimas." Contudo, na busca da palavra certa – ou da despalavra, como ele mesmo diz – e um contínuo exercício de simplificação, o poeta criou um universo muito particular e, por isso mesmo, universal: "Não tenho mais nenhuma ideia sobre o mundo. / Acho um tanto obtuso ter ideias. / Prefiro fazer vadiagem com letras posso ver quanto / é branco o silêncio do orvalho."

Nesta vadiagem com as letras, dá vontade de ficar o tempo todo citando os versos do poeta que acabou descobrindo, ao longo da vida, o valor de ser coisa e ainda muito mais: "chuvas, tardes, ventos, passarinhos...", de saber olhar para baixo: "É um olhar para baixo que eu nasci tendo. / É um olhar para o ser menor, para o insignificante que eu me criei tendo." Sempre em estado de palavra: "Para enxergar as coisas sem feitio é preciso / não saber nada. / É preciso entrar em estado de árvore. / É preciso entrar em estado de palavra. / Só quem está em estado de palavra pode / enxergar as coisas sem feitio." Deixo com vocês alguns poemas deste 14º livro de Manoel de Barros, lançado originalmente em 1998 e dividido em duas partes: "Retrato do artista quando coisa" e "Biografia do orvalho".

Poema 14 - Retrato do artista quando coisa
(Manoel de Barros)

Remexo com um pedacinho de arame nas
minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
entre conchas, osso de arara, pedaços de pote,
sabugos, asas de caçarolas etc.
E tem um carrinho de bruços no meio do
terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a
puxar o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras
no seu caminhão.
O menino também puxava, nos becos de sua
aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino é hoje um homem douto que trata
com física quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo
umas latas tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem
douto encomendou uma árvore torta –
Para caber nos seus passarinhos.
De tarde os passarinhos fazem árvore nele.

Poema 16 - Retrato do artista quando coisa
(Manoel de Barros)

Agora só espero a despalavra: a palavra nascida
para o canto – desde os pássaros.
A palavra sem pronúncia, ágrafa.
Quero o som que ainda não deu liga.
Quero o som gotejante das violas de cocho.
A palavra que tenha um aroma ainda cego.
Até antes do murmúrio.
Que fosse nem um risco de voz.
Que só mostrasse a cintilância dos escuros.
A palavra incapaz de ocupar o lugar de uma
imagem.
O antesmente verbal: a despalavra mesmo.

Poema 9 - Biografia do orvalho
(Manoel de Barros)

Quando o mundo abandonar o meu olho.
Quando o meu olho furado de belezas for
esquecido pelo mundo.
Que hei de fazer?
Quando o silêncio que grita de meu olho não
for mais escutado.
Que hei de fazer?
Que hei de fazer se de repente a manhã voltar?
Que hei de fazer?
– Dormir, talvez chorar.

Poema 11 - Biografia do orvalho
(Manoel de Barros)

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não
aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Sobre o autor: Manoel de Barros (1916-2014) nasceu em Cuiabá, mas foi criado numa fazenda próxima a Corumbá. Começou sua educação num internato em Campo Grande e, aos doze anos, foi matriculado no Colégio São José, no Rio de Janeiro – cidade onde viveu por trinta anos. Em 1937, publicou seu primeiro livro de poesia, Poemas concebidos sem pecado. Viajou pela Europa, estudou cinema e arte em Nova York. Em 1958, mudou-se com a mulher, Stella, e os três filhos para o Pantanal. Viveu um período de intensos e rústicos trabalhos para formar a fazenda; por isso, durante quase dez anos, pouco se dedicou à literatura. Nos anos 1960, vivendo em Campo Grande, foi premiado pelo livro Compêndio para uso dos pássaros e, na década de 1970, voltou à cena literária com Matéria de poesia. No início dos anos 1990, sua obra poética foi reunida no volume Gramática expositiva do chão (Poesia quase toda). A partir de então, conquistou vários prêmios importantes, como o APCA, o Jabuti e o Nestlé de Literatura. Nos anos 2000, sua obra foi publicada em Portugal, recebeu prêmios internacionais e foi traduzida para vários idiomas.
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Adriana Scarpin 28/04/2016

"Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era o néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
O que resta de grandezas para nós são os
desconheceres completou.
Para enxergar as coisas sem feitio é preciso
não saber nada.
É preciso entrar em estado de árvore.
É preciso entrar em estado de palavra.
Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio."
Bianca.Araujo 23/01/2020minha estante
meu poema favorito




Serena 07/01/2011

"Retrato do artista quando coisa: borboletas
Já trocam as árvore por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol."
[Manoel de Barros]

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22/09/2009

Sublime
Manoel no seu melhor, mais palavrório, orgulhoso do primitivo...
De encher os olhos e a alma...
Formalmente dividido em duas partes onde descreve o estado do artista quando coisa e a biografia do orvalho, na prática é uma poesia por linha. Uma característica bem manoelina, exarcebada aqui. Delícia!
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