Ale 06/02/2017
Daquilo que o Ocidente sabe
A Odisseia é um poema dedicado ao regresso de Ulisses a Ítaca, cidade que partiu dez anos antes para a famigerada Guerra de Troia. Ao todo, demoraria vinte anos desde o momento que partiu ao momento que regressou.
É um poema espetacular de estrutura fascinante e enredo cativante. É do regresso daquele que viu companheiros mortos em Cícones, estraçalhados por gigantes em suas terras, comidos por Polifemo e por Cila, que viu a ira de Hélio e de Poseidon, que conheceu Circe e foi cortejado por Calipso, aquele que foi protagonista do massacre inexorável de dezenas de pretendentes de sua mulher, do grande Ulisses de mil ardis.
Odisseu é o herói mais astucioso e sábio da mitologia, sendo afeiçoado a ninguém menos que Palas Atena, a deusa da sabedoria, incitadora de hostes. Formam um par perfeito; os deuses se afeiçoam àqueles que lhes são semelhantes e ninguém mais poderia ser do que Atena em ajudar o ardiloso herói pelas suas errâncias até Ítaca. Claro que sem Polifemo e Poseidon a Odisseia provavelmente não existiria e por causa da ira deste último Odisseu sofreu mais do que normalmente o faria em seu regresso. Atena, deusa da sabedoria, não pode lutar contra um deus do porte dele, mas pode convencer os outros deuses e principalmente Zeus a conceder Ulisses seu regresso tão esperado. Foi o que fez no primeiro canto da obra, enquanto Poseidon estava convenientemente ausente.
Há muito o que ser dito sobre a obra e muitos já escreveram livros provando minha afirmativa, mas aqui me deterei àquilo que mais me chamou a atenção.
A hospitalidade é ideia constante no poema, sendo diversas vezes suscitadas por estrangeiros e pelos anfitriões. Zeus, para os mortais, é o protetor dos suplicantes, dos estrangeiros, e recusar a hospitalidade é afrontar o deus. É muito comum ser dito "ele é bom e temente aos deuses", pois quer dizer que ele os respeita e dá hospitalidade àquele que precisa, temente da ira de Zeus. O que me chamou a atenção é Poseidon quebrar essa máxima quando, com ajuda e anuência de Zeus, transforma o navio que levou Ulisses a Ítaca e regressava à terra dos Feácios em pedra e prometer circundar com uma montanha a ilha. Ora, os Feácios foram gentis e hospitaleiros e concederam ao estrangeiro o que ele queria, como bons anfitriões, e por isso foram castigados pelo deus dos mares. Acredito que aqui, quando uma força imensa confronta outra, ambas devem entrar em consenso para o bem maior. Gosto de pensar que Zeus tenha visto dessa forma evitando um confronto com Poseidon.
Aquiles, o grande herói de Troia, prefere ser servo de alguém desconhecido do que rei entre os mortais em Hades. Sua conversa com Odisseu e com Agamenon demonstra muito pouco entusiasmo em estar aonde ele está, apesar de ser o melhor dentre os mortos. Fico curioso em saber o porquê. Dizem que em Hades não há lógica rígida ou geografia fixa e por isso possa ser difícil de explicá-la, mas não posso deixar de imaginar como possa ser o reino e a mansão do irmão de Zeus.
Como seria encontrar dentre os mortos sua mãe e em prantos perguntar-lhe como morreu? Por qual motivo estarão impedidos de se abraçar novamente? E mesmo depois de transpor a funesta pergunta, receber resposta mais desoladora ainda? Ouvir que morrera de tristeza por muito não ver o filho amado? Ou então olhar para seu fiel cachorro e ver que te reconhece mesmo vinte anos depois e com o corpo desfigurado e não poder demonstrar seu afeto? Saber que sua última visão foi esta? A Odisseia sabe bem como montar esses cenários. Que ela sobreviva até o fim dos tempos e que se torne viva e comum novamente nas estantes dos leitores. Ela merece.
"Vede bem como os mortais acusam os deuses!
De nós (dizem) provém as desgraças, quando são eles,
pela sua loucura, que sofrem mais do que deviam!"