Arsenio Meira 12/12/2013
Constante precípicio
Vallejo nasceu em Medellín, e a julgar pelo teor catilinário da sua prosa, desde o primeiro pranto, ainda na maternidade, parece viver em estado de iminente colapso. O homem passa a impressão de que é um precipício ambulante. A primeira pergunta que vem à cabeça é se alguma outra cidade do mundo poderia produzir um escritor tão desencantado da vida e da humanidade. Medellín era (de uns tempos pra cá melhorou e muito) a cidade mais violenta do mundo, com uma taxa de 140 homicídios por ano para cada cem mil habitantes. Nesse ambiente onde a vida é tão barata, onde é "mais fácil contratar um assassino de aluguel do que uma babá", Vallejo nasceu e cresceu, cercado de muitos irmãos em casa e de tiros e corpos pela rua.
O fato é que soa como um relato confessional de Vallejo a história em primeira pessoa de sua relação com a mãe fertilíssima (vinte filhos) e egocêntrica, com o pai sensível e estóico ao mesmo tempo, com o irmão soropositivo que ele ama como a ninguém mais e que sempre foi seu maior companheiro nas investidas homossexuais. A fotografia na capa da edição mostra o próprio Fernando e o irmão abraçados quando tinham 4 e 3 anos, e Vallejo chega a fazer referência à essa foto ao longo do texto.
O livro é estruturado em torno da agonia e da morte dessas duas figuras maiores e mais amadas na vida do autor, o pai e o irmão, o que corresponde aos dois momentos em que o narrador/Vallejo retorna do México, onde vive, para reencontrar a casa de Medellín, o ego da Louca (a mãe) e o próprio fantasma da morte, que cruza à sua frente e dialoga abertamente com ele. Vallejo tenta convencer-nos de que a morte em si é o elemento central do livro, e ele mesmo, à certa altura, com o humor de um Brás Cubas, diz-nos que é um narrador já morto, que morrera ao telefone justamente no momento em que soube da morte do irmão, que convalescera durante muito tempo.
É no seu ir e vir entre a cidade do México e Medellín, no reaparecimento das lembranças, no reencontro com os pais e os irmãos, que Vallejo vai destilando seu ódio, suas ilimitadas diatribes contra tudo e contra todos. Impreca contra a Colômbia, os presidentes, a Igreja, o México (país das propinas e da corrupção), a Nicarágua o Papa, Deus, Cristo, a medicina, as mães , as laranjas (imagino o que ele pensa das uvas...), a reprodução humana e o crescimento demográfico.
A imprecação é a marca, o cacoete, o estilo de Vallejo, aparecendo a cada duas frases. A agressividade é tanto mais eficaz e corrosiva porque misturada a um certo tom picaresco que, no entanto, não dilui a desilusão e a tragédia; tornando-as mais fundas, como sói acontecer em situações tais.
O ódio é para quase tudo, o amor para poucos. Além do pai e do irmão já mortos, só ama os animais, as ratas do prédio de Nova York onde trabalhou, os cães sacrificados de seu outro irmão. Como em Coetzee, para Vallejo o humano já está fundamentalmente perdido; resta dar consolo aos animais que sofrem apesar de sua pureza.
Vallejo faz uso de um estilo solto, circular, vai e volta no tempo, nas lembranças, conversa com o leitor, com a própria editora/revisora, para que não o censure em suas diatribes contra figuras e valores sagrados. Há no que escreve uma curiosa mistura de iconoclastia e moralismo, um ataque a valores tradicionais e humanistas, e ao mesmo tempo uma condenação à corrupção, à mentira, aos desmandos, à ambição, à venalidade dos políticos, do clero, do homem. O romancista bem que poderia fazer menção ao pai das diatribes, Lucius Sergius Catilina.
Talvez poucos autores consigam alcançar esse paroxismo da violência verbal sem perder o encanto literário. Depois do realismo mágico de García Márquez, a Colômbia nos dá esse ultra-realismo herético e diabólico de Vallejo, que não "perdoou" quase ninguém do seu ódio iconoclasta. É desconcertante. É possível pinçar aqui e ali, algumas imagens poéticas, que dificilmente sobrevivem ao estrondo da sua bazuca giratória. E o ritmo que ele logrou imprimir ao livro é acachapante. Até contra o samba, o homem impreca... e já que ele julga e vomita tanta bile, vingo-me ligeiramente. lembrando o famoso verso da canção do saudoso Dorival Caymmi: "quem não gosta de samba..."
Sob o ponto de vista literário, é justo dizer que a leitura, embora eminentemente transgressora, não cansa. É a técnica, a perícia do escritor. Às vezes, belas palavras, sentimentos ternos, manejados por quem não entende do riscado, ficam mais enfadonhos que o especial de Natal de Roberto Carlos.