spoiler visualizarClayton 02/12/2020
A comedia humana inteira
A Comedia Humana inteira antes dos 40.
Vol.XV
Estudos filosóficos
Dando continuidade a essa odisseia leitora da vasta obra balzaquiana, eis que o volume quinze da Comédia Humana abre portas a uma faceta nova e surpreendente de sua criação, denominada pelo autor de Estudos Filosóficos: um conjunto de obras não presas aos demais volumes pela temática, pelo tempo e espaço, mas que ainda sim se faz imprescindível a esse afresco gigantesco. Essas obras também não se constituem o ponto final cronológico da Comédia: as partes que a compõem, bem assim como as demais durante a trajetória que trouxe o leitor aqui, são obras de início de carreira, mas também de final.
A primeira, elogiada pelo próprio gênio alemão Goethe, é o famoso romance A pele de Onagro, obra fantástica cuja ação se passa nessa mesma Paris onde testemunhamos a ascensão de dândis como Rastignac (que inclusive aparece aqui, como amigo e benfeitor do protagonista) e cortesãs em pleno esplendor, todos esses elementos presentes na obra. Nela acompanhamos Rafael Valentim, um desses desiludidos em Paris como Lucien de Rubempré, que menosprezado em seu talento e pela mundana a quem ama, decide-se atirar no Sena. Um encontro providencial com um estranho antiquário, e o conhecimento de um estranho artefato que realiza desejos e, ao fazê-lo, diminui de tamanho, mudará os rumos de sua vida. A obra analisa a natureza vã dos desejos humanos e como a existência vital é consumida em troca de bens pelos quais a humanidade toda anseia, mas que em essência nada significam. A estrutura da obra é semelhante a outras de Balzac: começa numa instância adiantada da trajetória do protagonista, retrocede para um ponto anterior (aqui, numa estranha narrativa levada a cabo no fim de uma orgia, quando todos estão bêbados, o que só torna a eloquência do narrador e a atenção do ouvinte muito estranhas, inverossímeis) e depois prossegue até seu desfecho. Dignas de nota, na narrativa retrospectiva, são a figura fria e deslumbrante de Fedora, que desdenha ao mesmo tempo que magnetiza seus admiradores (a quem não cede) e, no desfecho, a figura angelical de Paulina, a jovem outrora humilde que prestava auxílio a Rafael, que posteriormente, num lance inesperado, ficará rica (então possuidora do único predicado que lhe faltava para se amada pelo protagonista).
Segue-se a esse romance o conto Jesus Cristo em Flandres, obra que retoma uma faceta balzaquiana de fundir diferentes obras numa intenção maior. A presente é constituída de duas partes: a primeira, situada na região mencionada, mas num tempo pretérito ao qual a Comédia se concentra, narra uma tormenta numa embarcação constituída por integrantes de diferentes classes sociais. Todos estão destinados a morrer, exceto os que derem ouvidos a um misterioso tripulante que permanece impassível, exortando a que todos creiam apenas. Digna de nota é a crítica aos que afundam, que são apenas tipos (num procedimento estético semelhante ao que Gil Vicente emprendera em sua mais famosa obra), e perecem justamente pelos atributos que os caracterizam: o sábio que ri das exortações acima mencionadas, o avarento que submerge pelo peso de suas riquezas etc. A segunda parte do conto é ainda mais impressionante: o narrador, presente numa igreja, nela tem uma visão envolvendo uma mulher corrompida que, contraditoriamente, o encaminha para a crença. Percebe-se então que a unidade dessas partes é a devoção à igreja católica como saída para corrupção dos tempos modernos.
(Continua...)
(Continuação)
O conto longo Melmoth Apaziguado revela a face ocultista de Balzac. A obra, embora perfeitamente compreensível por si só, foi motivada e reflete a influência de Charles Robert Maturin, padre irlandês que escrevera Melmoth the Wanderer, obra essa hoje praticamente desconhecida e que nosso autor pretendia maior que o Manfredo, de Byron, ou mesmo que o Fausto, de Goethe. A história narra as desventuras de um velho militar, agora caixa do grande banqueiro Nucingen, tentado a roubar seu patrão para bancar uma vida de fausto na Itália na compaixa de sua cortesã Aquilina (uma das que participaram da grande orgia em A pele de Onagro, fato posterior a este conto). Contudo, um estranho e misterioso homem lhe segue os passos e, predizendo sua ruína, oferece-lhe um pacto que lhe arrancará qualquer gozo das ilusões da vida, a que chamamos prazeres. É o início de uma "maldição" que será passada de pessoa a pessoa, como uma epidemia, em meio à bolsa de valores, transformando-se mordazmente em um valor como outro qualquer ali. O conto ilude o leitor, pois inicia com uma dessas análises habituais de Balzac sobre um tipo social, o caixa, e evolui para uma narrativa fantástica, horripilante e ocultista, que torna a leitura incômoda. Mais uma vez o desejo humano ganha proporções inesperadas e destrutivas, e no fim se direciona ao nada, pretendendo tudo.
Segue-se a novela Massimilla Doni com uma narrativa que dá novos ares ao conjunto: nela será introduzida a reflexão sobre a arte e o ideal, e sua relação tumultuosa com o homem. A história se passa em Veneza, e a personagem-título é a esposa desprezada de um grande senhor. Ela se vê nos braços de Emílio Memmi, um jovem atormentado, indeciso entre ela e Clara Tinti. A primeira é uma grande apreciadora da música clássica, a segunda uma grande cantora lírica. Essa antinomia em Emílio entre o amor ideal e a plenitude do gozo carnal será intensa a ponto do suicídio ser um ato cogitado. Será este efetivado? Essa questão será apenas uma de outras de que a novela trata. Ela, inclusive, se fixa em grande parte na análise da ópera de Rossini, Moisés, que Massimilla se ocupa em destrinchar (em plena execução) a um médico francês inominado (possivelmente o famoso Bianchon) que assumirá na história um papel importante. Será responsável por "curar" o perturbado Emílio bem como o cantor Genovese que, companheiro e amador de Tinti, é por ela ignorado e sempre desafina em sua presença. Enfim, eis um conflito bizarro que termina num desenlace não menos estranho, digno de um Boccaccio (o que vem bem a propósito).
(Continua...)
(Continuação)
A obra-prima ignorada é uma das obras-primas do autor (com o perdão do trocadilho) e que, consta, fez o famoso pintor Cézanne chorar por se reconhecer no drama. Esse conto, situado no século XVII, trata de um episódio fictício ocorrido nos anos iniciais e formativos de Nicolas Poussin, mestre da pintura que se dirige ao ateliê do mestre Francisco Porbus para com ele aprender. Lá, Poussin conhece o velho Frenhofer, outro mestre pintor mas abastado que crítica severamente um quadro de Porbus e, ali mesmo, esboça um traço que, embora não satisfaça o autor, deixa os dois pintores admirados. O velho os convida a seu ateliê e mostra uns poucos trabalhos, mencionando de passagem sua obra-prima, pela qual nutre ensandecida adoração, e cuja confecção, ainda não terminada, porque longe do Ideal, lhe gastou anos de trabalho. Os dois pintores sentem-se curiosos e desejam ardentemente ver a obra, Poussin oferecendo mesmo o nu de sua amante de formas ideais para a contemplação do velho, para que este a possa comparar com sua obra-prima e assim dar por encerrada sua lida. O desfecho, contudo, é inesperado. Esse conto, unido à obra que o antecede e às outras duas que o sucedem, traduz uma ideia central que parece pairar nessas obras, e que segundo Félix Davin, crítico de Balzac, se traduz assim: "o pensamento mata o pensador". É um tema recorrente da grande literatura esse entrelaçamento entre o gênio e a loucura, mas não deixa de ser angustiante observar a profundidade de tal abismo.
Gambara, o próximo conto, segue o mesmo rumo. Um nobre jovem abastado, em busca de uma aventura, acaba perseguindo uma pobre e desventurada jovem, esposa de um obsessivo músico, o senhor Gambara, que inventa instrumentos musicais e, há tempos recluso, se dedica à criação de uma trilogia operística. O jovem acaba deixando um pouco de lado sua conquista e se dedica a entender e cuidar de Gambara; este apresenta ao jovem sua obra Maomé, estendendo-se numa análise que, assim como em Massimilla Doni, tem como fito revelar os refinamentos e tortuosos caminhos da criação artística. Contudo, Gambara tangencia igualmente a genialidade e a loucura, e talvez sua cura seja, ao mesmo tempo, sua perdição, como em Dom Quixote.
(Continua...)
(Continuação...)
Dá fim ao presente volume o romance A procura do absoluto. Está-se aqui no terreno da química, confundido-se com a alquimia, e acompanha-se, na região de Flandres, o obstinado sr. Baltazar Claës, abastado nobre casado com a disforme mas bela Josefina, a quem faz sofrer, bem como aos filhos, por sua ideia fixa em encontrar a substância comum a todos os elementos existentes, o Absoluto. Como o barão Hulot em A prima Bette, Claës se tornará um verdadeiro viciado pela sua busca infrutífera, consumindo não apenas seus recursos milionários, sendo dolorosamente assistenciado pela esposa submissa e sua filha mais velha (num lance francamente inverossímil), mas também consumindo a vida e a alegria ao seu redor. Enfim, aqui se trata filosoficamente da ideia do "pensador consumido" acima exposta, mas também do preço a se pagar por um homem para o avanço intelectivo e científico da humanidade.
Enfim, os Estudos Filosóficos desse volume pasmam o leitor que chegado até esse ponto pensava conhecer todas as facetas de Balzac. Nada mais longe da verdade. Embora tais obras não sejam de todo originais e mesmo nelas encontremos trechos semelhantes ao Balzac romântico (de gosto melodramático duvidoso) e ao realista, estudioso de tipos e registrador histórico, esses Estudos são um empreendimento singular, que acrescentam uma coloração nova e forte à miríade que existe na paleta de cores desse artista. A natureza do desejo humano, seu objeto ilusório, a genialidade criadora do artista entrelaçada à loucura e o ideal inalcançável pelos limites humanos, são tais e outros temas que o leitor poderá encontrar nessas páginas de profunda humanidade.
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