spoiler visualizarLaíssa 03/09/2023
A cola da realidade
O livro começa com a premissa de que as personagens visitarão o farol no dia seguinte se fizer um bom tempo. Esse é o desejo de James, filho mais novo dos Ramsays; e o que sua mãe mais quer é que esse desejo seja realizado. No entanto, Mr. Ramsay estilhaça toda e qualquer esperança ao afirmar, com sua voz e postura verossímeis, que no dia seguinte o tempo não estará bom. Enquanto isso, Lily Briscoe, uma dentre vários convidados do casal, pinta Mrs. Ramsay e a casa.
A estabilização do conflito principal do enredo logo no início da narrativa permite com que Virgínia possa fazer sua mágica, sabendo que o leitor estará engajado e seguirá ao longo do livro rumo ao farol.
Com essa técnica bem trabalhada, o narrador está livre para mergulhar nas profundezas das mentes das personagens, uma de cada vez, alternando as perspectivas, enquanto a vela dos acontecimentos queima lentamente.
E como é esse mergulho? Certamente, diferente de qualquer outro. Os pensamentos, as impressões, as tramas inconscientes são artisticamente capturadas em linguagem modelada como se tivesse acabado de ter sido criada. Essa massa de palavras é comprimida e dilatada para além de seu limite, para, então, ser esculpida primorosamente como uma estátua de água corrente, que flui mantendo a forma e a coesão. A descrição, os detalhes, o contorno dos símbolos que compõem o alfabeto, tudo define uma nova forma de vida que pulsa no ritmo das frases e das pinceladas.
Isso é feito por um narrador que não se revela de prontidão. Pode-se pensar que o narrador seja algum deus, a natureza, a casa ou algum dos personagens, mas o livro é narrado exatamente pelo o que quer que seja que une o sujeito, o objeto e a realidade, ou seja, aquilo que cola tudo, impedindo seu desabamento; o que faz sentido com a teoria filosófica desenvolvida por Mr. Ramsay (sujeito, objeto e a natureza da realidade).
Seguindo o enredo, Mr. Ramsay provou-se certo e eles não vão ao farol no dia seguinte e nem no próximo. O tempo passa, as pessoas mudam, algumas morrem. Apenas dez anos depois, algumas personagens retornam à casa, a expedição se realiza, e Lily termina a pintura.
Ao longo na narrativa, o farol é caracterizado como o próprio destino, o qual permanece no mesmo local, sendo até mesmo visível, mas que só pode ser alcançado quando entregue pelas mãos do acaso. E a pintura de Lily é o próprio livro que se lê, no qual captura-se, portanto, de forma artística e poética, não apenas a violência, a diversidade, a unicidade da vida, bem como a subversão do tempo à consciência humana e a subversão da consciência humana ao tempo, e também a força inexorável da realidade.