Alexandre Kovacs / Mundo de K 10/03/2020
Mia Couto - Estórias abensonhadas
Editora Companhia das Letras - 160 Páginas - Capa de Alceu Chiesorin Nunes - Ilustração de Angelo Abu - Lançamento no Brasil: 2016 (9ª reimpressão).
É sempre um prazer renovado ler o moçambicano Mia Couto, vencedor do prêmio Camões 2013 e primeiro autor em língua portuguesa a ser finalista do Booker International Prize na versão de 2015. A sua prosa poética é inspirada na rica tradição do folclore africano em contraste com a dura realidade das ex-colônias, depois dos efeitos devastadores de um movimento de guerrilhas pela independência de Portugal (1961 a 1974), sucedido por uma longa e violenta guerra civil (1977 a 1992) que deixou o país em destroços. Este livro, lançado originalmente em 1994, segundo Mia Couto, reúne contos escritos depois da guerra, "entre as margens da mágoa e da esperança", quando tudo parecia indicar que Moçambique não conseguiria superar a destruição, no entanto, ainda citando a linda introdução do autor: "Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso."
Em Estórias abensonhadas novamente encontramos a força e a beleza da linguagem inventada por Mia Couto, cuja habilidade para produzir neologismos só é comparável ao do nosso grande João Guimarães Rosa. Assim, a chuva que cai depois de um longo período de seca é mais do que abençoada, é preciso criar uma nova palavra para imaginá-la de maneira completa: abensonhada. Essa chuva redentora é um símbolo do final do sofrimento do povo moçambicano, depois de anos de guerra a terra estaria "se lavando do passado".
"Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. [...]" - Trecho de "Chuva: a abensonhada" (p. 43)
Em O cego Estrelinho, um argumento inesquecível: um cego conhece o mundo por meio das descrições extraordinárias de seu guia, um mundo imaginado que se torna muito mais interessante do que o mundo real. Quando o guia é convocado para o serviço militar, deixa a sua irmã Infelizmina como substituta, mas que tristeza, ela "não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade." O cego perde toda a fantasia a que se acostumara com seu guia original, mas a vida lhe reserva uma surpresa.
"O cego Estrelinho era pessoa de nenhuma vez: sua história poderia ser contada e descontada não fosse seu guia, Gigito Efraim. A mão de Gigito conduziu o desvistado por tempos e idades. Aquela mão era repartidamente comum, extensão de um no outro, siamensal. E assim era quase de nascença. Memória de Estrelinho tinha cinco dedos e eram os de Gigito postos, em aperto, na sua própria mão. [...] Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. [...]" - Trecho de "O cego Estrelinho" (p. 21)
É claro que, mesmo durante a guerra, o amor tem um importante espaço na poesia de Mia Couto, ainda que seja um amor estranho e inadequado como o que é descrito no conto Os infelizes cálculos da felicidade sobre a paixão de um professor de matemática por sua aluna, "menina de incorreta idade". Júlio Novesfora era um homem que sempre pensara que "Do ponto de vista da álgebra, a ternura é um absurdo. Como o zero negativo", contudo ele perde totalmente o domínio da lógica e dos rigores da geometria ao se apaixonar pela menina.
"O homem desta estória é chamado de Júlio Novesfora. Noutras falas: o mestre Novesfora. Homem bastante matemático, vivendo na quantidade exata, morando sempre no acertado lugar. O mundo, para ele, estava posto em equação de infinito grau. Qualquer situação lhe algebrava o pensamento. Integrais, derivadas, matrizes: para tudo existia a devida fórmula. A maior parte das vezes mesmo ele nem incomodava os neurônios: '– É conta que se faz sem cabeça.' Doseava o coração em aplicações regradas, reduzida a paixão ao seu equivalente numérico. Amores, mulheres, filhos: tudo isso era hipótese nula. O sentimento, dizia ele, não tem logaritmo. Por isso nem se justifica a sua equação. Desde menino se abstivera de afetos. [...]" - Trecho de "Os infelizes cálculos da felicidade" (p. 93)