Douglas MCT 10/01/2019
Uma obra-prima dos quadrinhos, diferente de tudo o que você já leu
Quarta releitura torna a experiência ainda mais fenomenal, quando estamos falando de um dos melhores quadrinhos de todos os tempos.
Quando BONE surgiu em 1991, o mercado de HQs nos EUA passava por uma crise de identidade, sem trazer nada de novo para as prateleiras das comic shops. Com um desenho limpo de um lado e detalhado de outro, a história recheada de humor, aventura, romance e suspense, conquistou o mundo durante a mais de uma década desse sucesso de Jeff Smith, que largou a animação para descobrir o prazer de produzir e publicar quadrinhos. O autor recuperou alguns rascunhos de infância para dar vida a personagens que imediatamente nos remetem a Mickey, Donald e Pateta, caminhando por um cenário e contexto à lá O Senhor dos Anéis. Mas isso ainda é uma maneira muito simplista de definir BONE. É certo comparar Fone Bone, o mais normalzinho, com Mickey, e Smiley Bone mais ou menos com o Pateta, mas Phoney Bone é avarento como o Tio Patinhas e tem certa malignidade atrelada a um tom trapalhão pelos seus atos, a maneira como vemos em Patolino.
O design completamente cartunesco dos "ossinhos" (por isso BONE, mas acho que você já sacou) vem tanto do trabalho de Carl Barks (que colocava a família pato em aventuras emblemáticas), como do grande Walt Kelly e seu trabalho em Pogo (compare algumas páginas e notará a clara inspiração de Smith nas silhuetas). Mas claro, o artista bebeu de várias fontes e autores para compor sua obra-prima: Art Spiegelman de Maus (que depois se tornaria seu mestre e amigo pessoal), Charles Schulz de Peanuts (que lhe ensinou como pontuar gags engraçadíssimas entre uma situação e outra), Dave Sim de Cerebus (carregado de crítica social embalada em contexto fantástico), até o humor moleque do Pernalonga.
Por outro lado, Vovó Ben (a versão feminina do Popeye, do queixo a superforça), Espinho (personagem é tratada com toda sexualidade naturalista que uma musa merece), Down e outros humanos do Vale, carregam um traço mais "realista", que propositalmente causam um contraste com as criaturinhas brancas de Boneville. O Encapuzado e as criaturas ratazanas, já evocam figuras retiradas de livros de fantasia tradicionais. Nas páginas, todos esses elementos diferentes ornam na composição e funcionam incrivelmente nos enquadramentos e no traço belíssimo de Smith.
A narrativa com certeza é o ponto forte da HQ. Saído dos estúdios de animação, Jeff Smith concebe praticamente um storyboard com esse quadrinho. Cada cena é um espetáculo, personagens com vida saltando de um quadro para uma calha, e cada movimento não necessitando de muitas linhas de ação, já que as sequências que ele desenvolve sem pressa e com maestria, dão conta do recado, e o leitor consegue compreender claramente tudo o que rola numa cena. Você ainda vai se pegar paquerando uma mesma página por longos minutos. Pontuado por sacadas de humor, o quadrinho alterna muito bem entre comédia (protagonizada especialmente pelas trapalhadas de Phoney e Smiley), momentos fofos (como Fone escrevendo uma carta de amor), suspense (os misteriosos sonhos de Espinho), flerte com o terror (qualquer cena envolvendo as ratazanas e principalmente o Encapuzado) e aventura, equilibrando emoções, enquanto narra uma jornada improvável, que foi classificada pela TIME como "a melhor graphic novel para todas as idades". E não é a toa.
BONE foi publicado nos EUA em 1991 de forma independente, possui 55 edições, foi traduzido para mais de 15 idiomas e sua saga chegou ao final em 2004. Em 13 anos de história, BONE conquistou 10 prêmios Eisner, 11 Harvey Awards, Prêmio Yellow Kid, do Salão de Luca (Itália) e Melhor Coletânea por Bone: Complete Adventures. Entre seus fãs, temos nomes como Neil Gaiman, o mestre Will Eisner e o criador d´Os Simpsons, Matt Groening. A primeira vez que BONE chegou ao Brasil foi em dezembro de 1998, publicado em edições avulsas e em preto e branco pela Via Lettera em 14 volumes incompletos, do qual eu guardo boas lembranças, afinal fora meu primeiro contato com o material (e amor a primeira vista); a última edição foi lançada em maio de 2010 e o assunto morreu. Em março de 2015, a HQM tentou um resgate, dessa vez em cores, mas não passou do primeiro encadernado.
Agora saindo de maneira definitiva pela todavia, “Bone: O Vale ou Equinócio Vernal” tem 448 páginas e é o primeiro de três volumes publicados pela primeira vez na íntegra em versão colorida em português. A expectativa dos editores brasileiros é de que os dois volumes seguintes sejam lançados até o final de 2019, completando as 1.332 páginas da HQ. Apesar de eu preferir em preto e branco (que valoriza mais o traço de Smith e mantém o ar de storyboard que combina com a obra), é inegável que o trabalho de cores de Steve Hamaker contribuiu para um novo tipo de experiência de leitura do quadrinho, ainda mais em cenas noturnas, fornecendo uma textura e vivacidade bem-vindas, além de tornar o material mais acessível para o grande público. Minha única reclamação quanto a essa edição está na composição da capa, que aumenta a arte e corta parte da ilustração, e principalmente a retirada do nome do autor. Ok, ele consta na lombada, mas Jeff Smith é tudo atrelado a BONE e a falta de seu nome acima do título foi fortemente sentida. No mais, o encadernado é caprichado e trás um belo Posfácio do criador, além das 20 capas originais que compõe o primeiro volume.
BONE é leitura obrigatória para todo apaixonado por quadrinhos. E mesmo que engraçadíssimo, não é um gibi para crianças. É uma HQ para leitores de todas as idades.