Alexandre Kovacs / Mundo de K 02/01/2022
Afonso Cruz - Princípio de Karenina
Editora Companhia das Letras - 200 Páginas - Capa: Claudia Espínola de Carvalho, Fotos de capa e miolo de Afonso Cruz - Lançamento: 2021.
A famosa abertura de Anna Kariênina, de Tolstói, "Todas as famílias felizes se parecem; todas as infelizes são infelizes à sua maneira", é recriada pelo português Afonso Cruz em seu próprio romance: "Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo. Esta história, minha e da tua mãe, é também a tua."; aqui a frase funciona também como o início de uma longa carta de um pai para a filha que não conheceu. Este pai será o narrador-protagonista contando-nos a história de sua vida desde a infância com a ajuda de citações que variam de Tolstói até Guimarães Rosa: "Infelicidade é questão de prefixo. [...] e que viver é um rasgar-se e remendar-se", uma obra original e sensível, boa oportunidade para conhecer um pouco mais da literatura contemporânea portuguesa.
Aos oito anos, o nosso protagonista, que tem uma deficiência congênita em um dos pés, se torna também "coxo da cabeça" ao aprender com o pai a temer "tudo a que ele chamava de estrangeiro e que não se limitava a uma fronteira geográfica, mas sobretudo moral: – Ouça, menino: se alguns lugares são geograficamente acessíveis, são, no entanto, moral e psicologicamente aberrantes. Um homem de bem não deve sair do seu espaço, deve deixar a selva para os selvagens." Mais tarde, ele entenderia que a aversão paterna ao estrangeiro, significava apenas medo. Onde começava essa definição de estrangeiro? Segundo o pai, "o estrangeiro começava logo a seguir à porta de casa, e esse exterior estendia-se até a Conchinchina [...], o longe mais longe possível, mais longe do que a distância, o momento e o espaço em que a desordem se impõe de uma forma tal que nada faz sentido."
"Como poderia eu, rapaz relativamente deformado, sonhar um dia casar-me com a Fernanda da farmácia, quando o meu rival era o ápice do cânone grego, uma pessoa meio dicionário mitológico, meio recordista dos cento e dez metros barreiras? Mas, na verdade, o segredo é incorpóreo, não se vê. A realidade pode ser muito dura, mas os sonhos dão boas almofadas. O mundo pode ser de pedra, mas os sonhos são um colchão por cima dele e têm a teimosia e a ousadia de não desistir. Por mais que os afastemos, enxotemos como fazemos às moscas incômodas, os sonhos voltam sempre a assombrar-nos, a pousar-nos na cabeça, a picar-nos. Não é a dureza do mundo que vence, são estes insetos frágeis, sem ossos, sem corpo, a que chamamos sonhos, que acabam por fazer buracos no mundo, por o penetrar e vencer." (p. 64)
Após o casamento com a Fernanda da farmácia e a morte do pai, a vida segue a rotina que "é a coluna vertebral da moralidade", até que esta muralha interior é destruída pela chegada da substituta da velhíssima criada da Mealhada, justamente uma refugiada do Vietnã no início da década de 70, uma mulher que inspira a seguinte anotação no seu caderno de contabilidade: "Quando olho para ela, vejo uma janela aberta." Logo, o limitado e infeliz universo doméstico é invadido por ingredientes exóticos, sendo a culinária apenas uma representação de tudo o que mudava: "A partir desse instante, a solidez da minha rotina começou a abrir uma brecha por onde entrava luz. A presença dela haveria de perturbar o tédio nosso de cada dia, abrindo uma janela por onde quer que passasse."
"As noites entre mim e a minha mulher poderiam ter sido momentos de fulgor e calor entre duas pessoas recém-casadas, mas o ambiente era de escritório. Ela era, como já disse, indecisa, e isso paga-se caro na cama quando tudo deve ser fluido, sem hesitações. E eu, pelo meu lado, estava ali como quem carimba um formulário, zeloso do dever da mutiplicação, sem manifestações que pudessem abalar a sobriedade cristã, para a frente, para trás, para a frente, para trás, ela de olhos colados no teto, eu de olhos colados na cabeceira da cama de carvalho, controlando a respiração e concluindo, com uma espécie de suspiro longo, que, se resultasse em descendência, haveria de justificar aquela cena ridícula, que á a cópula executada como nós a executávamos." (p. 93)
É claro que toda essa magia tem prazo certo para acabar. É o que acontece quando uma gravidez inesperada faz com que a criada retorne para sua terra natal. Conseguirá o nosso protagonista, educado com base na solidez da rotina, ter a coragem suficiente para reconhecer que "não existe felicidade na igualdade e na monotonia" e que "é impossível ser feliz sem dor"? Talvez a lição mais importante neste romance seja a certeza da necessidade de desequilíbrio para provocar o movimento, Afinal, "Sem desequilíbrio, nada se move. Um círculo está em constante desequilíbrio. É bom para fazer andar os carros. Os quadrados não têm essa possibilidade. Já estão bem assim, sentados à lareira, a sublinhar a sua hombridade, a sua estrutura sólida. Não são felizes, são produtos industriais saídos de uma máquina de fazer quadrados." E você caro leitor, sua vida está mais para círculo ou quadrado?
"Cochinchina era para o meu pai o lugar para lá do lugar. Uma pessoa podia pecar, mas a Cochinchina era o metapecado, a fera suprema, o ponto onde a razão enlouquece, estava para lá de Deus. Uma pessoa podia imaginar a extensão do mundo, mas a Cochinchina era um passo além da nossa imaginação. Como nunca tinha sentido uma paixão verdadeira, ainda não sabia que a mesma definição se poderia aplicar ao amor: fera suprema, enlouquecimento da razão, ponto para lá de Deus ou da imaginação. / Não conseguia dormir. Senti que tinha voltado a ter oito anos e que me havia confrontado com a existência de uma região mitológica, uma barbárie onde viviam pessoas, algumas delas bastante luminosas, com caras de janelas abertas, com quem era possível falar e, quem sabe, amar. [...]" (p. 104)
Sobre o autor: Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico português. Estudou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e no Instituto Superior de Artes Plásticas de Madeira. Foi vencedor do Grande Prêmio de Conto Camilo Castelo Branco de 2010 com "Enciclopédia da Estória Universal" e em 2012 do Prêmio da União Europeia de Literatura com "A boneca de Kokoschka", entre outros. No Brasil, a Editora Companhia das Letras publicou "Jesus Cristo bebia cerveja" (2014) e "Flores" (2016).