Toni 26/08/2019
Em uma passagem de Azul Corvo (Adriana Lisboa, 2010), a protagonista Vanja se pergunta “como as vidas viradas ao avesso e as pessoas viradas ao avesso reencontram o direito”. “Sobreviver é o que resta da tortura”, responde a narradora de Sob os pés, meu corpo inteiro, “Sua continuação inconfundível.” Neste romance da Marcia Tiburi, escrito contra a desmemória nacional e a precarização do trauma, somos apresentados a Lúcia (ou Alice de Souza), sobrevivente das sevícias e dos porões da ditadura civil-militar brasileira, no momento em que, diante do túmulo que leva seu nome, encontra, por acaso, aquela que pode ser a filha de sua irmã Adriana, morta pela repressão.
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Esse encontro fortuito numa São Paulo distopicamente presente (onde a água escasseia e a violência consegue ser, em igual medida assombrosa, simbólica sistêmica subjetiva) faz eclodir tensões entre uma memória resistente ao apagamento e a inexistência de espaços para sua elaboração. Entre tantas outras chaves de leitura, o lugar do torturado, no romance de Tiburi, é caracterizado como uma impossibilidade: a dor inscrita numa página virada da história, soterrada por camadas de outras crises (golpes), dores e exílios, um lugar que continua a doer sem lugar onde possa existir. No relato de Lúcia/Alice, a memória coletiva brasileira é devassada a partir do extravasamento da esfera privada, proporcionando uma visão indissociável dos espaços de vivência do sujeito sob um estado de exceção perpétuo.
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Se a escrita da história representa um “rito de sepultamento”, como a definiu Michel de Certeau, romances como Sob os pés, meu corpo inteiro surgem para desenterrar os mortos e fazer com que seus corpos alvejados mutilados desaparecidos venham perturbar o sono de nosso “estado de direito” (brancoelitista) falsamente pacificado. Entre as inúmeras marcas da ditadura, as cicatrizes de Lúcia/Alice dão corpo a uma memória nacional precária, ainda muito aquém daquela consciência crítica que depende, em grande medida, da capacidade de seus sujeitos de articular passado e presente.