Airechu0 04/04/2019
"A vida é relativa. Mas a morte é absoluta."
Após um longo período longe do universo em que fez suas estreia como romancista, Leonel Caldela retorna ao mundo de Arton, casa do cenário de RPG nacional mais amado do País, para mais uma vez, e de maneira magistral, revirar tudo de cabeça para baixo!
Mesmo antes da oficialização de Tormenta como um cenário de RPG, reunindo boa parte do material de fantasia medieval publicado na mais icônica revista especializada neste hobbie do País, a Dragão Brasil, numa edição comemorativa em 1999, um dos seus maiores vilões já havia feito sua estreia. Poucos anos antes, numa matéria escrita por JM Trevisan, publicada em 1997.
Seu nome, “cantado por uns e amaldiçoados por outros”, é Thwor Ironfist, um general bugbear dotado duma inteligência estratégica fora do comum, o único ser capaz de reunir sob o mesmo estandarte sombrio as demais raças monstruosas, por séculos acostumadas a serem subjugadas por humanos, elfos e anões. Thwor é um líder nato, um monstro ardiloso e um combatente feroz, comandando um exército enorme composto por uma infindável miríade de criaturas, desde kobolds, goblins e gnolls até orcs, ogros e bugbears. Esse exército ficou conhecido como A Aliança Negra e todos ali querem vingança e anseiam retomar o território que outrora pertencia a eles, varrendo do mapa as demais civilizações.
Quando Arton e Tormenta surgiram como cenário de RPG essa conquista já havia dado cabo de todos os reinos humanos do continente de Lamnor, localizado ao sul, após uma verdadeira chacina no reino élfico de Lennórien, o primeiro a tombar depois de anos barrando com muita facilidade as investidas dos hobgoblins. Apenas a cidade fortaleza de Khalifor separava a civilização do continente ao norte da Aliança Negra e nem ela era garantia de segurança suficiente. Aos povos do norte a esperança residia numa antiga profecia, que previu o nascimento e a ascensão de Thwor Ironfist e também falava em sua derrocada por meio da Flecha de Fogo, que enfim romperia o coração das trevas. Mas o que ela é, ninguém sabe...
Essa incógnita em torno da real identidade da Flecha de Fogo perdurou por mais de vinte anos e foi alvo de muita especulação e grande expectativa por parte dos fãs que jogam e acompanham Tormenta desde o início. Coube a Leonel Caldela finalmente revelar o mistério, por meio da voz de seu narrador protagonista, Corben, um clérigo de Thyathis, o deus da Ressurreição e da Profecia, neste que é o seu quarto romance em Arton e o décimo primeiro de carreira.
Corben é também um acadêmico, um astrólogo que perscruta os céus munido de telescópios e outros instrumentos a fim de obter previsões sobre o futuro e compreensão sobre o passado com base nos movimentos e posições dos astros e estrelas no espaço. Existe no reino de Tyrondir uma cidade dedicada a esse tipo de pesquisa, chamada Sternachten. As previsões feitas lá são muito úteis para nobres e reis e isso movimenta a economia daquele lugar. Corben é pouco mais do que um aprendiz, é um jovem cheio dos típicos problemas para alguém da sua idade. Naqueles dias a cidade estava mais agitada do que o normal pois Lorde Niebling, um gnomo da Corte Imperial, o fundador e o maior patrono dos telescópios de Sternachten era aguardado para uma de suas raras visitas. Todos estavam se preparando para mostrar o melhor e impressionar aquela tão exótica e importante figura. Porém nem toda a ciência de Sternachten fora capaz de prever o horror que se seguiria a tudo aquilo, contudo Corben sobreviveria para nos contar. Então, de repente enredado por eventos muito maiores do que ele, nosso jovem clérigo e astrólogo passará por diversas mudanças ao longo desta história, tendo na busca da Flecha de Fogo a sua derradeira missão. Afinal, Thwor, a Aliança Negra e um conflito iminente em grande escala já são uma realidade no cotidiano de todos daquele reino...
Me aprofundar mais no enredo é estragar a experiência do pretenso leitor, então foquemos noutros aspectos da obra tão legais e tão impactantes quanto ao que a vida de Corben vai se tornar.
Primeiro é possível notar como o autor teve liberdade criativa para explorar em sua totalidade aspectos relevantes da cultura goblinóide e da própria Aliança Negra que até então nos eram completamente desconhecidos pela escassez de material. Lamnor era um lugar parcamente descrito, não tínhamos uma ideia mais clara de como viviam todas aquelas raças tão diversas sob o comando de Thwor e o estandarte do Círculo Negro. Como é e como vive uma sociedade formada por criaturas monstruosas? Qual o papel do culto a Ragnar, o Deus da Morte e dos Goblinóides nessa sociedade e no grande plano de conquista e dominação das demais raças? Para além da ideia de um exército sanguinolento, quem são e como convivem os generais, os conselheiros, os herdeiros e os súditos daquele que fez a guerra tomar a tudo e a todos? Caldela responde a tudo isso aqui, nos surpreendendo e fazendo questionar por várias vezes algumas de nossas suposições prévias uma a uma.
Outra característica marcante na narrativa durante toda leitura é a presença da dualidade. Se em “A Insustentável Leveza do Ser”, Milan Kundera se apropria da oposição paradoxal do peso e da leveza como uma metáfora do drama existencial vivenciado por seus personagens, aqui, Leonel Caldela vai além, flertando, senão com todos, ao menos com uma pluralidade enorme de abstrações conceituais antagônicas. Vida e morte, livre-arbítrio e destino, conhecimento e ignorância, passado e futuro, movimento e inércia, estagnação e criatividade, humano e goblinóide… o dual é sentido em tudo. De forma bastante marcada em Corben, naquilo que poderíamos interpretar como o seu self e também nos seus pensamentos transpostos no relato que faz. Assim, observando do interior do personagem narrador para o exterior, podemos enxergar a dualidade presente também nas ações de pano de fundo, nas aspirações individuais e coletivas das culturas e sociedades envolvidas no conflito, e até nas escolhas das divindades que elas cultuam. É como se nos puséssemos de fora daquela criação e pudéssemos contemplar os fios de causa e feito interligados a cada evento, a cada fato e personagem movendo-se simultaneamente. Soa complexo e realmente é, de modo que não saberia explicar o quanto disso foi intencional ou não e aqui é impossível não falar do genial conceito do Akzath que me valendo dum trocadilho dual: dá um pouco de ordem a este caldeirão de caos.
Dentre todos esses conceitos um se destaca e não por acaso, a Morte. Este é um livro sobre uma guerra de grandes proporções e vidas serão perdidas em ambos os lados, é um livro sobre a coisa que levará o líder dum destes lados à morte. É um livro sobre seres que cultuam Ragnar, um deus que é o deus daquilo que eles são enquanto espécie e também o deus encarregado de pôr fim a tudo o que começou com uma vida. É um livro sobre mortes e sobre a Morte e acho fascinante como ela sempre esteve tão presente e apenas agora, parando pra pensar melhor no que vivi naquelas mais de setecentas páginas me dou conta disto. Me senti extremamente tocado por uma curta cena dum típico funeral goblinóide, o poético bater de asas antecedendo o desaparecimento total me remeteu instantaneamente à de Morte de Neil Gaiman, uma das personagens que mais apreciei ver nas páginas de Sandman.
Para quem nunca se aventurou antes por Arton, ou conhece Caldela por outros livros, vale o lembrete de que este foi pensado para servir como introdução ao já vasto e multimídia mundo de Tormenta. Tudo o que é necessário para a plena compreensão das dinâmicas deste mundo e que afeta diretamente a história de Corben é detalhado e adequadamente explicado, de forma natural e sem perdas de ritmo.
Ler A Flecha de Fogo não é apenas embarcar numa jornada aventuresca, não é apenas percorrer um mundo de fantasia colorido e diverso, é também transpor fronteiras culturais, é se por praticamente numa experiência antropológica, da qual não se escapa incólume e se sai engrandecido, renascido, tal como Dante, “puro e disposto a salire a le stelle”, após atravessar tormentos inimagináveis no Inferno e no Purgatório. Resta, ao final da leitura, uma enorme curiosidade para saber como Arton vai lidar com o futuro que surgiu deste livro. A única certeza é a de que Arton, mais do que nunca, é um mundo de problemas, é um mundo como deve ser. E cabe a você resolvê-los!
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