BaronVonJohn 19/03/2024
Drácula, de Bram Stoker | crítica
Histórias de vampiro não são algo novo e tampouco encontram-se em escassez nas artes. Na verdade, se analisarmos com cuidado, desde que Drácula, de Bram Stoker, foi escrito já existira obras que abordam a criatura hematófaga. O Vampiro, de John Polidori, em 1819. A Família Vurdalak, de Alexei Tolstói, de 1847. E Carmilla, de Sheridan Le Fanu, de 1872. Inúmeras personagens, cenários, prosas, e, claro, vários vampiros. Então, fazemos uma pergunta, por que o romance de Stoker alcançou o status absoluto de dar consciência a forma do mito literário do vampiro que conhecemos hoje em dia? E como até hoje influencia no terror? Em verdade, não estou aqui para dar um veredito, porém, após a leitura do livro, reconheço não somente a importância de Drácula do modo como reflete o mundo da época, em especial a sociedade vitoriana, mas também do porque ele é tão aclamado. Enfim, vamos ao texto.
Publicado em 1897, 'Drácula' de Bram Stoker é um romance epistolar — a obra ora traz depoimentos dos personagens, ora recortes de jornais e outros gêneros textuais — de ficção gótica aonde acompanhamos o conde vampiro homônimo e sua ida a cidade-joia do império britânico, Londres, a fim de se banquetear com o pulsante sangue dos pescoços das nobres mulheres da metrópole, enquanto é perseguido por um grupo de nobres cavalheiros, vítimas de suas artimanhas, que buscam destruí-lo antes que ele destrua a própria sociedade. Nesse sentido, um dos maiores méritos do romance é a capacidade de tratar de certas ansiedades sociais que permeavam a Inglaterra vitoriana, como imigração, as novas doenças, mudanças tecnológicas, papéis de gênero e o medo coletivo da degeneração da nação. Tudo isso é trabalhado de modo implícito na prosa de Stoker, afinal, se formos meramente numa perspectiva diegética, é apenas um romance gótico do embate entre amor e morte de perseguição à um vampiro. Porém, embora essa visão também é funcional e válida, creio que o valor mimético é algo tão enriquecedor quanto.
Desse modo, Conde Drácula é a personificação dos maiores medos vitorianos. É um estrangeiro, que regozija-se em honradez de suas origens "primitivas", aos olhos britânicos, sendo uma herança de uma época medieval há muito superada pela marcha da mudança, afinal, o período que Stoker escreve sua personagem é uma época de mudanças fulcrais na configuração política, social, tecnológica, habitacional e artística na Europa e no mundo. Raramente vemos Drácula executando 'de facto' suas ações, na verdade, só temos contato direto com sua figura no início da obra, em seu castelo na Transilvânia, e em esparsas aparições, como no zoológico ou no quarto de Mina, até o seu final. Pouco sabemos do personagem para além daquilo que escutamos em seu castelo no início, e se não houver uma pesquisa fora do livro sobre a inspiração de Bram Stoker no voivoda da Valáquia, Vlad, o Empalador, pouco dá para se abstrair de sua personagem. Porém, isso pouco importa. Afinal, o próprio Stoker sequer visitou a Transilvânia para escrever seu livro, pois, passou a maior parte do tempo em Whitby — que também se faz presente na trama quando Mina, Lucy e a mãe de Lucy vão para lá — estudando as superstições dos povos do leste europeu e a própria história para criar o cenário, mas pouco se ateve à um destrinchamento minucioso dos locais, porque Drácula é um mito criado através de mitos. Assim, ele é um personagem mais importante que o próprio livro que o divulgou. Não que a narrativa epistolar de Bram Stoker não possua brilho ou valor — irei comentá-la em breve —, mas é fato que a figura do Conde é tão monstruosamente sedutora e bem escrita que nem mesmo as páginas conseguem contê-lo. Ele é onipresente na narrativa, não como personagem, mas como símbolo. Ele é a névoa, o morcego, os lobos, ele controla a mente de Renfield, perverte as mulheres espalhando veneno em seu sangue — o que serve de representação para doenças como sífilis que estavam em surto na época — e causa terror em todos. É por isso que não há como negar que é uma personagem fantástica.
Um outro ponto que é excelente em Drácula é a escrita. A prosa de Stoker é um deleite, sendo realmente surpreendente o quanto, em um romance tão longo, consegue manter o leitor cativado e angustiado com tudo aquilo. Embora não haja uma linguagem característica ou um texto com elementos denotativos que explicitem a personagem que acompanhamos, o autor trabalha tão bem em sua licença poética de colocar os diálogos e informações extras em documentos que eram para ser 'curtos' ou pessoais, como as anotações do Dr. Seward ou o Diário de Mina, respectivamente, que conseguimos enxergar as personagens no próprio texto. As primeiras cenas estão entre as coisas mais marcantes que já li. O cárcere de Jonathan Harker oprime e é decadente. Definhamos junto à personagem, mesmo que ainda carregue uma esperança cristã em seu peito, afinal, esse também é um embate do bem contra o mal. O que segue após isso é uma espécie de interlúdio na narrativa, aonde conhecemos mais das personagens, como Mina, Lucy, Quincey, Seward e Arthur até o momento que Drácula desembarca do Deméter e morde o pescoço de Lucy. O ritmo fica mais lento e menos interessante nesse período, mas em compensação, com a chegada de Van Helsing para auxiliar Lucy, a trama retorna aos eixos. O que se segue até o fim é exploração do mais profundo decadentismo e cansaço do ser humano. Para caçar Drácula eles quebram instituições, como a propriedade privada, assim como ele também as quebra, como a pureza da mulher inglesa. Eles lutam contra o desejo carnal e a perversão para não cair na morbidez das musas do Conde. Cansam-se à cada página, em especial Jonathan, mas nunca perdem a esperança, em especial por causa de Mina, que assume a figura de uma mulher mariana e nunca permite que os homens se deixem por abater, ela lhes dá força mesmo que a sua já esteja esgotada. É quase como um embate entre a dita castidade cristão e erudição da sociedade britânica contra a devassidão pagã e obscurantismo do Conde, aonde o elo entre esses mundos são, justamente, as mulheres que tanto podem purificar, quanto condenar o homem que fraqueja em seus desejos, não é à toa que as principais figuras do elenco são masculinos. Nesse aspecto, são personagens interessantes, assim como a narrativa, gosto do desfecho, embora ache apressado, mas é inegável que os dois 'interlúdios' da trama — um durante a estadia Whitby e o outro após a morte de Lucy — deixam a desejar no que se refere à envolvimento. No mais, Drácula é um romance fantástico, envolvente e hipnótico do início ao fim e mesmo com uma conclusão anticlimática e com esses truncamentos na narrativa, ainda desenvolve-se como uma obra extraordinária.
Considerações por fora...
Personagens: em sua maioria ótimos e interessantes de se acompanhar, mesmo que mantenham-se bem definidos e com poucas nuances. Jonathan Harker é um ótimo protagonista, com um desenvolvimento tímido, mas visível ao final, sendo ele essencial para o desenrolar da trama, mesmo que perca seu protagonismo no meio do livro. Mina Harker dispensa comentários, é meiga, gentil, e de coração imenso, mas, como Van Helsing disse, é também alguém esperta, corajosa e inspira não somente as personagens, mas também o leitor pela sua dedicação com a missão e de sua resiliência ao suportar sua 'mácula'. Arthur Goldaming não possui muita relevância além de seu romance com Lucy, então não me cativou muito, o mesmo se assemelha com Quincey Morris que faz o papel do 'cara durão' preparado para tudo, mas, diferentemente do Lorde Goldaming, ele possui mais relevância e mais participação ativa devido sua personalidade combativa e, querendo ou não, seu desfecho torna-o mais marcante. Abraham Van Helsing e John Seward são os meus personagens favoritos aqui. Atuam como herói e ajudante, sempre a disposição do grupo, sendo Van Helsing a voz da sabedoria e sensatez — mesmo com seu jeito estranho e seu humor tragicômico — e Dr. Seward aquele que sempre oferece uma resposta às indagações de seu mestre. Adorava as partes dos dois conversando ou de Seward descrevendo Renfield.
Nota: 90/100