Davi Cirne 21/10/2024
Os Retratos que Escondemos em Salas Secretas
"O Retrato de Dorian Gray" gira em torno do protagonista Dorian Gray, um belo e jovem aristocrata da Inglaterra vitoriana. Inocente e ingênuo quanto à própria beleza e ao efeito que causava nas pessoas, tudo muda quando seu amigo, Basil Hallward, um artista genial e idealista, pinta de Dorian um retrato que Basil considera seu melhor trabalho, que captura toda a dimensão da singular beleza de Dorian. O retrato age sobre o jovem como uma revelação - ele se dá conta, pela primeira vez, de como era belo. Tal qual o Narciso do mito grego, ele apaixona-se por si mesmo. Ao mesmo tempo, entretanto, se entristece ao imaginar que toda aquela beleza irá se desvanecer, fustigada pelo passar do tempo, enquanto o quadro, que a capturava, permaneceria sempre o mesmo. E Dorian daria tudo - até mesmo a própria alma - para trocar de lugar com o retrato.
Assim, nosso Narciso assume ares de Fausto: declarando, em voz alta, seu desejo de permanecer sempre jovem enquanto o retrato envelhece, ele sela, inadvertidamente, um "pacto fáustico", em que se troca algo de valor espiritual por algo material. Pois é nesse momento que Dorian Gray perde sua alma, aprisionando-a às molduras do quadro.
Outro personagem central e de extrema significância para o desenvolvimento da trama é lorde Henry Wotton, um aristocrata alguns anos mais velho que Dorian, cínico e de falas hedonistas, que defende uma vida unicamente pelo prazer. Com suas falas sarcásticas e perigosas, mas prazerosas aos ouvidos de Dorian, como um doce veneno, ele passa a seduzir o rapaz a adotar um estilo de vida semelhante ao seu, e ambos desenvolvem um vínculo de fascínio mútuo. Se Basil Hallward foi o responsável por revelar a Dorian sua beleza, lorde Henry foi o responsável por revelar-lhe o que sua beleza poderia alcançar. Um ponto interessante é que Basil e Henry funcionam quase como um contraponto um do outro, este levando Dorian a uma vida de prazeres carnais, aquele atuando como uma espécie de consciência, tentando preservar a pureza do jovem.
Enquanto Dorian cede cada vez mais às tentações da vida hedonista, afogando-se em luxo, prazeres carnais e bens materiais, se tornando, ele próprio, uma má influência para seus conhecidos, muitos dos quais caem em desgraça, Dorian percebe aos poucos que o seu retrato está mudando. Ele passa não só a envelhecer enquanto Dorian permanece jovem, mas também se degrada, se deforma, ganha um aspecto cada vez mais maligno, a cada "pecado" ou crime que o jovem comete, a cada vez que ele deixa suas tendências narcisistas se sobressaírem sobre suas relações com outras pessoas. O retrato era a alma que ele perdera.
O que você faria se sua alma, com todas as suas belezas e todas as suas máculas e maldades, pudesse ser contemplada em uma pintura emoldurada e exposta? Dorian, diante de tal cenário, determina-se a esconder o quadro em uma sala secreta, oculta do mundo. Em um dos pontos que achei mais interessantes do livro, Dorian encontra um prazer mórbido em postar-se diante do retrato com um espelho, de modo a comparar-se com ele, a assistir sua degradação enquanto ele próprio permanece imaculado. Em outros momentos, ele teme e sente repulsa de sequer pensar na aparência do retrato. O que descreve perfeitamente bem nossa relação com nossa própria alma. A inevitabilidade humana de encará-la, seja para admirá-la, seja para amaldiçoá-la. Em maior ou menor grau, somos fixados nesse movimento em direção a nós mesmos; mais cedo ou mais tarde, todos nos defrontamos com os retratos que escondemos em nossas salas secretas, para apreciá-los, para nos torturar com sua degradação, ou simplesmente para guiar nossas ações vindouras, como bússolas morais. Seria esse um mal narcísico? Ou tão somente a condição humana?
Eu poderia comentar muito mais sobre esse livro: sobre seu impacto social, sobre como os discursos hedonistas do lorde Henry e do Dorian eram frutos da extrema repressão e da hipocrisia da sociedade vitoriana, sobre como o livro acabou sendo, ironicamente, um retrato dessa sociedade - o próprio autor foi julgado e condenado por sua homossexualidade. Mas esses foram os pontos que, dentre tantos outros, mais me impactaram nesse extraordinário romance filosófico.
O Retrato de Dorian Gray é um livro que nos coloca de frente para nós mesmos, como indivíduos e como sociedade. É um retrato de todos nós.