Luan ' 21/10/2011
Compreender como uma instituição que foi aceita por mais de trezentos anos, sendo legitimada pelo discurso religioso, econômico e cultural, e antes de tudo sendo absorvido pela sociedade, foi possível ser abolida, essa é a premissa de Emilia Viotti da Costa. Em Abolição, publicada pela primeira vez em 1982, e em 2001 pela Editora Global, Emilia Viotti procura expor seus argumentos, frutos de um longo processo de estudo e mesmo de vida, pois a mesma além de ser autora de livros como Da Senzala à Colônia, Da Monarqiua à República: Momentos Decisivos e Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue livros que abarcam o conteúdo referente tanto ao período colonial quanto ao período imperial do Brasil foi professora na USP e nos Estados Unidos, consequentemente é com certeza que se pode afirmar que a autora possui propriedade e argumentos suficientes para trabalhar a questão da abolição, tema até hoje polêmico.
"A História é filha de seu tempo” (Borges, 1998, p. 56), sob esse preceito podemos dizer que a vivência de Emilia Viotti no período de ditadura militar, inclusive sendo aposentada pelo AI5 e sua experiência nos Estados Unidos pode lhes fornecer questões e perspectivas penitentes que em muito influenciaram seu estudo, produzido sob a égide do autoritarismo no Brasil e sendo inclusive um estudo importante para a compreensão de como a década de 80 via sua experiência antidemocrática, elementos que não ficam muito claros em sua obra, mas, que não podem deixar de ser salientados.
A necessidade de estabelecer uma efetiva exploração econômica do Brasil, pensada principalmente a partir de 1532, e os inconvenientes do uso de mão-de-obra nativa bem como a impossibilidade do recrutamento de mão-de-obra portuguesa acrescido da prévia experiência colonial e escravista na África, fez com que Portugal encontrasse nesta experiência elementos bases para o emprego da colonização no Brasil, sendo eles o latifúndio, a monocultura e o escravismo, o ultimo tornando-se a solução pro impasse da mão-de-obra acima citado. Coube a Portugal então legitimar a escravidão, e o fez usando o discurso religioso, que inicialmente aparece como agente que retira o negro africano da barbárie e do pecado oferecendo-lhes a civilização e posteriormente é usado como elemento conservador e repressor de qualquer pensamento que questionasse o status quo, da necessidade econômica a qual o escravo é incorporado aos bens materiais do senhor e mais, é o motor para o acumulo e aquisição de tais bens e a incorporação do escravo à sociedade, como mão-de-obra pra qualquer atividade, de sua capacidade demonstrativa de poder e prestigio social, para seu dono. Enfim, a escravidão não foi só muito bem construída como muito bem legitimada, através de uma confluência de atitudes e discursos. Mas como essa instituição tão necessária social e economicamente teve seus dias contados no final do século XIX?
A Abolição, de Emilia Viotti, torna-se um componente essencial para a compreensão de um momento tão singular da história do Brasil, a argumentação da autora se inscreve em uma explicação histórica que não se restringe a aspectos políticos ou econômicos, e muito menos ao espaço temporal das ultimas décadas precedentes à abolição. Para explicar a declaração da abolição da escravidão no Brasil em 13 de maio de 1888 Emilia Viotti preocupa-se em repensar todo o processo de construção do abolicionismo, pois as análises tradicionais ou simplistas trabalham as décadas precedentes da abolição tornando-se estudos, embora muito importantes, insuficientes, Viotti procura inscrever sua pesquisa em um período que vai desde a independência à abolição, demonstrando cada etapa do processo de construção do abolicionismo, trazendo ao debate elementos como a influência do pensamento iluminista e racionalista na crítica geral ao Antigo Regime e seus adjacentes, a nova posição da Inglaterra e a abertura de uma política e economia baseada no liberalismo, as novas relações econômicas vigentes em meados do século XVIII, situações internas brasileiras, como o crescimento do movimento abolicionista, as disputas republicanas e monarquistas, a Guerra do Paraguai e a situação social do negro, no que diz respeito às fugas, a sua expressão na impressa e na literatura e seus ganhos legislativos.
A obra de Emilia Viotti é muito pertinente e muito bem composta, e embora seja construída dividida em 11 capítulos com a introdução e o epílogo (que trabalha o contexto pós abolição) e sendo eles divididos em tópicos, ela consegue manter uma coerência e coesão sem perder a linha da narrativa, ao contrário de outras obras em que a organização por tópicos quebra a narrativa e impede que o leitor realize uma conexão entre os mesmo.
Desde a introdução do texto pode-se perceber, tanto as questões de motivação para o estudo do conteúdo como a metodologia utilizada pra a análise e exposição. A autora faz uso de uma espécie de digressão, abrindo a introdução da seguinte forma: “8 de maio de 1888, o ministro da Agricultura, Conselheiro Rodrigo Augusto da Silva, apresentou à câmara de deputados uma proposta do executivo declarando extinta a escravidão no Brasil”(VIOTTI. 2001 p. 13), mostrando em sua metodologia de exposição como e porque foi construído seu texto, partindo do ponto final, a abolição, e retrocedendo etapas para compreender o processo de construção dessa abolição.
O interessante é perceber como a autora decorre todo o texto com o intuito de demonstrar a construção do movimento abolicionista, sobretudo como um processo longo e gradual ao invés tão somente do estudo dos fenômenos ocorridos a partir da década de 50, embora ressalte a importância do estudo deste período. No segundo capítulo mostrando como o discurso religioso, e a moral que fora sempre usada para legitimar a escravidão, e como esse quadro começou a se modificar com o advento do iluminismo e racionalismo que passava a criticar o Antigo Regime bem como suas práticas, associando a escravidão a um elemento fruto do Antigo Regime a qual os novos avanços humanos, críticos e filosóficos ilustrados questionaram, definindo-os posteriormente como entraves ao desenvolvimento econômico com o surgimento do liberalismo. O liberalismo e antes de tudo a nova posição econômica da Inglaterra exercera pressão e influência direta na construção da campanha abolicionista, visto que a pressão para a supressão do tráfico negreiro presente desde a independência, como aponta Viotti no terceiro capítulo, além de fornecer elementos intelectuais que subsidiavam a discussão dos entraves econômicos conseqüentes da política escravista para o próprio desenvolvimento interno, demonstrou também os impasses decorridos da escravidão para a alimentação do novo sistema econômico vigente na Inglaterra. Pode-se marcar essa fase como o período inicial ao qual o escravo começou a ser pensado como desfavorável, sobretudo pelas decorrentes pressões inglesas, maiormente quando obtivera sucesso abolindo o tráfico, encarecendo o preço do escravo e fomentando uma deslocação da população escrava para o sul do país, através do comércio.
A autora trabalha com a concepção de certo equilíbrio ou homogeneidade ideológica das elites políticas, sobretudo antes da década de 50, entretanto após esse período esse quadro começa a se modificar, período onde o negro começa a aparecer na literatura, majoritariamente melancólico, associado à tortura ou o escravo justiceiro sendo que esse componente passa também a refletir também na política, já abalada. Nesta primeira fase do abolicionismo (1850-1871) há uma dificuldade na conciliação política então vigente no país e, decorre daí a criação de alas mais extremistas como a liga progressista. “O número de associações abolicionistas crescia nos núcleos urbanos. Agora já não eram só os estudantes e os poetas que agitavam a questão. Jornalistas ilustres, homens e mulheres juntavam-se a causa deles”(Viotti, 2001, p. 40) o movimento abolicionista crescia e encontrava respaldo não só na política, mas em todos os âmbitos sociais, uma prova disso é o uso dos pasquins denunciantes da injustiça, fonte histórica usada pela autora para demonstrar a dimensão que o problema atingira.
A partir do oitavo capítulo, e também no capítulo seis a autora se detém em uma análise mais política, na qual era procura compreender como o movimento abolicionista ganhavam corpo nas propostas e posicionamentos políticos, e como essa propostas eram vistas pela sociedade, sobretudo pela classe dominante ainda arraigada à mão-de-obra escravista, principalmente nas regiões do sul onde após a abolição do tráfico a presença de escravos tornou-se maior e a economia da região ainda se encontrara bastante dependente ao trabalho do negro.
Para Viotti o ultimo embate se dá no posicionamento dos partidos políticos e na ascensão de figuras políticas e sociais, que muitas vezes não possuíam qualquer valor humanitário e sim defendiam uma necessidade de modernização da economia, respaldo internacional ou mesmo promoção política. Neste momento os partidos republicanos e monarquistas tornam-se elementos centrais, tomando posições por vezes ambíguas e paradoxais, como é o caso do partido republicano que só se posiciona efetivamente a favor da abolição quando a mesma se torna inevitável.
Ao cabo pode se perceber que a obra de Emilia Viotti é de extrema importância para dar subsidio a discussão da escravidão e da abolição no Brasil imperial, pois a mesma não se restringe temporalmente ou mesmo aos parâmetros definidos por campos historiográficos, fazendo uso de diversas fontes históricas incorporando a participação popular no que diz respeito desde as fugas do escravos à defesa dos mesmo por parte da sociedade e de indivíduos anteriormente alheios a tal debate.