Wesley Taciturn 29/12/2010
Da Lit. portuguesa à heterônimia a conceitos interdisciplinares...
A literatura Portuguesa do início do século vinte teve um grande embate com o surgimento de um grupo que tinha propostas inovadoras, contrárias ao que até então havia sendo feito em relação às artes na “Renascença Portuguesa” e nas vertentes da “Águia” e do “Saudosismo”. Tal grupo, empolgado pelo contexto ao qual estava inserido (a proclamação da república em Portugal no ano de 1910, o “Vanguardismo artístico” que estava muito vivo em toda a Europa, a instabilidade político-social e a emergência das forças cosmopolitas progressistas, inquietações da Primeira Guerra Mundial), propunham algo que fosse além do Decadentismo, Simbolismo e todas a manifestações da época. Buscavam algo inovador, atual, que tivesse a cara do momento em que eles estavam vivendo; buscavam algo “Moderno” tanto no ideal ideológico como no ideal estético, e por essa razão fundaram em 1915 a revista Orpheu, onde temos como inauguradores ninguém mais ninguém menos que Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. A revista serviu de núcleo para todo o movimento chamado de orphismo e tem em suas características várias semelhanças com ideais vanguardistas: A poesia em versos livres, a idéia de velocidade, de “apagamento” do sujeito, o “hermetismo”, a mescla do material com o metafísico, do consciente com o inconsciente, do sonho com a razão, etc.
Em contraposição à Revista Orpheu, surgiu, em 1927, a revista “Presença”, dirigida por Régio e com ideais bem mais subjetivos. Se Orpheu com seus dois grandes poetas buscavam introduzir na arte o que havia de mais modernos em relação ao mundo e a vida, tendo, por isso mesmo, em seu ideário ideológico influências de filósofos e pensadores da época tais quais Schopenhauer, Nietszche, Freud e Jung, a Presença busca uma “contra-revolução modernista” por propor um retorno às características românticas de individualismo narcisista. Por isso Teresa Cristina Cerdeira em seu artigo intitulado Fernando Pessoa: A aventura suicida na modernidade usa muito bem a metáfora do espelho de Alice e o espelho de Narciso. Enquanto Orpheu foi o espelho fantástico no qual os escritores buscavam mergulhar e perderem-se conscientemente dessa perda dentro dele, Presença foi o espelho narcisista onde a vaidade de seus integrantes não acrescentaram muita coisa nova e que, no final das contas, acabou por “apagá-los” sem que deixassem muitos traços valorosos que pudessem perpassar os tempos seja pela originalidade, ou pela atitude revolucionária.
Toda a ciência oriunda do humanismo, da crença em Deus, da subjetividade da arte e da tão mesquinha burguesia, tudo tão fortemente em voga na época, caíram por terra com o teocida Nietzsche e todos os outros pensadores de cunho existencialista e/ou niilista. Isso teve reflexo no pensamento artístico da época e no individuo como ser cada vez mais a parte de seu vínculo consigo mesmo, cada vez mais sendo um “não-ser”, sendo nulo e perdido em meio à dissolução causada pelo caos e, muita vez, falta de esperança e fé do mundo moderno. Em outros países europeus esse sentimento já havia sido manifestado através das vanguardas e seus movimentos revolucionários Em Portugal tal espírito surgiu principalmente graças às inovações da revista Orpheu e das manifestações heteronímicas de Fernando Pessoa.
A dualidade da personalidade individual sempre foi muito bem expressa por vias literárias. É o que vemos desde o clássico “Dr. Jekyl & Mr. Hide” até os contos de Edgar Allan Poe, e tantos outros escritores antigos e até mesmo atuais. A fragmentação do sujeito se faz necessária em meio a um “grande deserto de almas desertas”, e a “persona” tende a ter diversas faces; várias são as mascaras que usamos corriqueiramente em nosso dia a dia, e a psicologia/psicanálise confirma tal situação múltipla do individuo, como claramente vemos na idéia dos arquétipos do inconsciente coletivo, sugerido por Jung sob o aparato dos estudos freudianos sobre o inconsciente, as repressões, e as manifestações dos desejos e impulsos instintivos e característicos de todos os seres humanos. Segundo Jung, todos temos características primitivas que nos acompanham desde a gestação à maturidade; nascemos já com impulsos (arquétipos) que nos impulsionam ao sentimento de grandeza (arquétipo de herói), ao sentimento de melancolia (arquétipo da morte) e alguns outros mais. No meio conturbado moderno o homem sábio se vê inevitavelmente preso à necessidade de “ser plural como o universo”, para talvez assim aceitar e confrontar com certa naturalidade as exigências do fardo pesado que a sabedoria impõe, pois, como diria Byron no séc. XVIII, “a arvore da sabedoria não é a mesma da felicidade”. Assim sendo, Pessoa desde muito jovem cria suas múltiplas faces, a começar pelo Chevalier de Pás, aos seis anos, passando por Alexander Search (uma espécie de arquétipo de procura) até chegar aos heterônimos mais famosos, dos quais estudaremos poemas de Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
Vale ressaltar que Fernando Pessoa se multiplicou mas nunca se afastou de si próprio e, como bom místico que era, chegava a uma espécie de “alquimia psicológica do eu” ao se encontrar exatamente na espiritualização multifacetada de sua arte. Como muito bem diria Nietzsche, “temos a arte para que não morramos com a realidade”, e Pessoa não se deixou morrer (tanto artística quanto fisicamente) através do amparo heteronímico espiritual e do uso do álcool; o mesmo não aconteceu com o outro fundador da Orpheu, Mário de Sá-Carneiro, que acabou por aniquilar-se (isso pode ser notado em seus poemas) pela impossibilidade que tinha de se fragmentar, “quebrar-se como um vaso” e tornar cada caco como elemento essencial para a constituição do total. Mário suicidou-se em sua “loucura”; Pessoa soube misticamente sobreviver a ela, porém ambos, pelo viés horaciano de vida, continuam a viver latejantes e intimidadores a ‘pertubar” a razão dos que pensam ser algo mais que um pedaço de ‘nada” preso a um imenso “nada”.
Álvaro de Campos
O heteronimo Alvaro de Campos é um de seus mais famosos por abordar temas diversos em seus poemas, carregando características do Simbolismo/Decadentismo, influências de Vanguardas, principalmente a vanguarda futurista de Marinetti quando exalta a modernidade, violência e velocidade, além de ser, algumas vezes, sensacionalista por querer "sentir tudo de todas as maneiras", ultrapassar a fragmentaridade numa "histeria de sensações". Em "vida" o heterônimo foi educado vulgarmente no Liceu e depois partiu para a Germânia afim de estudar Engenharia com enfoque em enfermaria, a principio, e depois Naval. A. de Campos foi admirador e recebeu assumidamente influências do escritor inglês Walt Whitman, talvez pelo fato dele, o heterônimo, ter tido educação inglesa e o forte sentimento de ser estrangeiro onde quer que esteja. Um de seus poemas mais célebres, "O Opiário", foi escrito enquanto esteve em férias no oriente.
No poema que analisaremos "Tabacaria", tentaremos encontrar algumas das peculiaridades desse heterônimo e contextualizar com a ciência e filosofia da época. Começando pela primeira estrofe, notamos explicitamente a força da sensação de ser "nada" tendo em sí "todos os sonhos do mundo", o que nos sugere que a questão quimérica da vida é a única coisa que faz com que não nos percamos em meio ao absoluto nada, não nos percamos parcialmente pois sonhos são manifestações subjetivas e, mesmo que fossem coletivas como os impulsos primitivos que todos os homens têm em comum, não representariam muita coisa, visto que na singularidade o individuo moderno é ignorado por haver tantos "singulares" tais quais ele ("Janelas do meu quarto,/
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é/
(E se soubessem quem é, o que saberiam?)"), e a sensação de nulidade, de solidão, se faz presente exatamente por causa da pluralidade exaustiva das massas. Aqui fica clara a questão de "mimetização" que o heterônimo faz, tentando através de seus versos demonstrar a sensação moderna de impotência perante a vontade de "ser" em meio a tantos outros que "são" exatamente como o individuo que acaba sendo diluído em meio ao caos.
A linguagem do poeta é repleta de traços marcadamente emocionais, porém sempre em embate com a frialdade do espaço real, lúcido e frio:
" Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida"
Não ter mais "irmandade" com as coisas a partir da morte. A casa, as carruagens, a rua, são elementos que marcam e traçam a subjetividade do sujeito e, em sentido mais amplo, o Estado, o meio em que a pessoa vive, marca a intersubjetividade. Ou seja, o espaço que vai sendo traçado no decorrer do poema expressa muito bem o choque de Álvaro de Campos com o universo, o choque do individuo, ser ínfimo e mortal, perante "a verdade" que o poeta diz ser possível apenas quando se está lúcido "como se estivesse para morrer". A verdade seria de que a subjetividade ou intersubjetividade, a "irmandade" do sujeito com as coisas e o meio, é coisa vã ou mesmo quimera. A anulação do sujeito se faz necessária para que ele saiba a verdade, ou o inverso: a anulação da verdade é crucial para que aja afirmação do sujeito, como vemos na seguinte passagem da próxima estrofe: o que reafirmamos na seguinte passagem da próxima estrofe: "À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro."; . Daí a "viagem" que é tema comum em outros poemas do heterônimo (por exemplo, "Grandes são os desertos", onde vemos objetos urbanos e a velocidade da cidade em forte contraposição ao sujeito). O individuo precisa "viajar" para encontrar a verdade; é preciso estar além da vida para se ter vida de verdade ("(...)é preciso ter vida e já não vale a pena haver vida [Grandes são os desertos];" "Navegar é preciso/Viver não é preciso [Mensagem]") como semelhantemente notamos no homônimo de Pessoa: ambos tratam da temática de transposição da vida para algo mais valoroso, A. de Campos é traçadamente mais melancólico e niilista em relação a isso.
A realidade é múltipla e o sujeito é apenas um. O heterônimo não quer abrir mão de ser sujeito e , por isso, se vê num beco sem saída por não encontrar uma realidade convincente. O que lhe resta? "Ter todos os sonhos do mundo". A ânsia em sentir de todas as maneiras é o que o difere dos outros heterônimos de Fernando Pessoa. E é nessa ânsia que o poeta desmistifica atitudes apolíneas e vangloria os excessos de Dionísio: "Fui até ao campo com grandes propósitos./
Mas lá encontrei só ervas e árvores,(...)" [ quinta estrofe]
"Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto." [estrofe 13]
A princípio ele tem "grandes propósitos", mas se frustra com a realidade externa fria e sem grande valorização. Depois, mais ao final do poema, ele encontra gozo no prazer do fumo e se liberta das angústias metafísicas e não sente mais vontade de canalizar sua insatisfação em versos. É o conformismo a única saída para o homem perdido que sabe e sente que ser fragmento ou tudo é o mesmo que ser nada.
O ritmo da poesia muda conforme a introspecção do poeta muda de enfoque:
“(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)”
A nostalgia, também constante em poemas de Álvaro de Campos, muda um pouco a intensidade dos verso; muda apenas momentaneamente, pois o eu - lírico como observador de uma garota comendo chocolates percebe que na inocência de um prazer estaria a superação dos males, assim como ele faz na estrofe 13 ao fumar um cigarro, e tem uma intensidade mais amena a principio,porém logo ele a trata como "suja" pela mesma inocência, o que nos remete à agressividade surrealista, e, novamente, há o choque entre sensações de vontade de se anular para "degustar" a vida em contraposição com o "degustar-se" masoquistamente para anular a vida, pois ele não é mais criança e já não crê, apesar de se interessar também por ela, na "metafísica do chocolate".
Não fazendo parte de nenhuma crença a qual esteja realmente convencido, o poeta sente-se cada vez mais estrangeiro: não foi na verdade que encontrou alento; falhou também ao tentar retroceder à infância; no deleite assume haver conforto; mas ciente está de que é conforto ilusório apesar de tudo; também não é diferente em relação ao ambiente físico em que está inserido:
"Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo."
(estrofe 8)
Tudo existe e é repleto de movimento, porém tudo está fora do poeta, numa realidade a qual ele sente-se como que não fazendo parte. Dinamicamente fazendo parte de tudo, faz parte de nada. Tal sentimento é frequente em cidades fortemente urbanizadas com problemas de superpopulação. A existência singular se dilui, os espaços se diluem e a permanência em determinado lugar é cada vez menor e, por isso, não há terra em que o ser pode-se dizer fazer parte; não há meio social em que sinta-se absolutamente confortável e tudo acaba realmente aparentando ser estrangeiro.
Sendo estranho a tudo o que o cerca, na consciência de saber-se desvalorizado pelos "entes vivos que se cruzam", Álvaro de Campos depara-se com a inutilidade de tudo quanto faz:
"Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada."
(estrofe 11)
Pouco antes desses versos lemos que "Vivi, estudei, amei e até cri,/E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.". Sabendo inútil em suas obras, o sujeito encontra-se tão inútil quanto elas, porém, pior, "calcando aos pés a consciência de estar existindo" e, assim sendo, desejando ser tal qual um mendigo em sua pobreza e parca educação que, por menos que possa ser, ao menos não tem o problema da angústia do saber-se como ser existente impotente perante o universo.
Para concluir, vejamos nos seguintes versos como se dá o desfeche quando o eu - lírico, observador, abre mão de suas divagações e entrega-se ao meio, gesticulando para um amigo e falando com o dono da tabacaria, mas antes se atendo ao ideal pessimista de finitude schopenhauriano:
"Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos."
(estrofe 12)
Tudo morrerá inevitavelmente e, sendo útil ou inútil, crente ou descrente o nada é certo e não há como remediar. Contrariamente a Ricardo Reis, Álvaro de Campos não crê que suas obras o farão eterno; antes crê que a tabuleta da tabacaria perecerá assim como os versos e, mais além, até a língua. O sensacionalismo nesses versos é bastante forte e o exagero do poeta poderia prosseguir dizendo que além da língua morrerão as nações, os continentes, os universos... Mas o bom senso de pensador que há no heterônimo não o permitiu tão grande exacerbação. Após acender o cigarro e acalmar os pensamentos, o poeta decide movimentar-se para, assim, fechar suas divagações sem chegar a nenhuma conclusão diferente da qual ele já conhecia:
"Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando."
(estrofe 14)
"(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.'
(estrofe 15)
"O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu."
(estrofe 16)
No encontro com a futilidade externa, sem metafísica, Álvaro de Campos interage mas não abandona seu lado profundo, metafísico ao dizer que "como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me". Interessante o nome do amigo do poeta que sugere-nos a posição passada do verbo estar. Esteves estava a acenar-lhe até o momento que o eu - lírico grita "Adeus". "Sem ideal nem esperança" é o modo que o poeta estava desde principiar as observações do outro lado da rua da tabacaria; e é o modo como termina. Não tão atormentado, graças à volúpia do prazer que encontrou no cigarro. Graças às possibilidades dionisíacas que a vida, boa ou má, tem para lhe oferecer.
- Wesley L. Santos -