Tatá 24/05/2020
Agradeço a Toni Morrison por ter incentivado Angela Davis a escrever essa autobiografia, de um caráter político fundamental para entendermos a lógica do sistema prisional racista estadunidense, da violência contra um povo e das semelhanças dessa lógica que atravessa fronteiras e atinge países como o Brasil.
Ela conta sobre sua infância, sobre antes da prisão e sobre depois, narrando todo o processo de julgamento.
Ao contar sobre o período que ficou presa, Angela explicita as recorrentes faltas de direitos das presidiárias, como ao narrar o cotidiano das detentas e como tudo lhes era proibido: livros, papel higiênico etc. Ela conta o absurdo da ala conhecida por “ala das loucas”, onde as detentas eram dopadas com drogas para ficarem imersas dentro de si, num estado lastimável e desumano, agravando qualquer problema que aquelas mulheres poderiam ter, ou a falta de cuidados básicos de saúde, entre tantas outras questões. Ainda diante de tanta desumanidade, as detentas criam uma rede de solidariedade pela Angela, e isso é algo emocionante de se ler.
Angela, ao contar sobre sua infância, também está narrando sobre o racismo de seu tempo (e como aquele racismo impacta no racismo estrutural de hoje, o que mudou? O que não mudou?). Ela fala sobre as diferenças de lugares frequentados por brancos/as x lugares frequentados por negros/as, incluindo a condição das escolas no sul estadunidense para a população negra, sendo condições terríveis em instalações caindo aos pedaços. Ao mesmo tempo, discutiam sobre pessoas que fizeram história e que eram apagadas em vários locais, como Harriet Tubman.
O fato de Angela ser do sul dos Estados Unidos a fez desde sua infância entender o racismo de modo escancarado, em absoluto nada velado. Quando foi pra Nova York, no entanto, era como se ela descobrisse um outro tipo de racismo, pois apesar de não haver lei segregacionista, havia o segregacionismo prático, caindo por terra a ilusão de lá ser menos racista que no sul.
Eu gostaria de dizer sobre cada detalhe minucioso da narrativa da autora. Mas acho que vale entender que a autobiografia de Davis é sempre pensando coletivamente, justamente por isso a obra é rica. Ela cita diversas lutas, como a dos irmãos Soledad e de tantos/as presos/as políticos. Sua autobiografia é a autobiografia de um povo e sobre as conquistas de um povo. Ao não individualizar a sua trajetória, ela foge da lógica liberal de individualizar tudo e transforma o individual no coletivo, algo muito importante em tempos que permanecêssemos assistindo a exaltação do jogo perverso e falso da meritocracia.
Ela é uma figura histórica de extrema importância, que atravessa fronteiras, porque a partir de um feminismo que pauta raça, classe e gênero, discutindo os sistemas institucionais arbitrários, ela alcança outros países, com realidades tão violentas quanto.
Estados Unidos, anos 60: crianças negras morrendo assassinadas, jovem adolescente morre com um tiro na nuca, algemado, indefeso, pela polícia. Brasil, anos 2020: Ágatha Felix, João Pedro, Kauê Ribeiro dos Santos e mais uma infinita lista de jovens negros/as assassinados pelo Estado.
Leitura fundamental para todas e todos.