Luiza 17/08/2020
Este livro me abriu novos jeitos de enxergar o mundo e os conteúdo intelectuais, de notícias e de entretenimento que consumo. Apesar de ser uma obra da década de 70, se mantém extremamente relevante nos dias de hoje, principalmente nos discursos políticos. É repleto de ótimas provocações. Achei uma obra muito densa e que exige bastante atenção e interesse do leitor. Não é uma leitura fácil, por ser escrita de uma forma bem acadêmica, e achei repetitiva e cansativa em muitos momentos, motivo pelo qual levei tanto tempo para conseguir completar e, apesar de ter achado um livro muito importante, me atenho a recomendá-lo apenas para quem tenha muito interesse no assunto e esteja disposto à encarar um desafio. [Livro lido entre junho e agosto de 2020]
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Adiante, escrevo os pontos importantes que aprendi com o livro para fins de anotações pessoais, que quero guardar e lembrar, e não mais de uma resenha para outros aproveitarem.
- Geografia imaginativa: ideia de que as fronteiras e as distinções geográficas podem ser estabelecidas de forma, antes de tudo, arbitrária, já que não requer que os bárbaros reconheçam a distinção e, embora fronteiras geográficas acompanhem as sociais, étnicas e culturais, o próprio sentimento de diferença para com o que julga estrangeiro é baseado por ideias pouco rigorosas, que dão cabo a todo tipo de suposição, associação e ficção sobre o que de fato povoa o espaço além da fronteira da própria pessoa que a estabeleceu. A geografia imaginativa ajuda a intensificar o sentido da própria mente e a dramatizar a distância e diferença em relação a o que e quem está longe dela.
- Geografia imaginativa legitima um vocabulário cheio de figuras representativas, ou tropos, cada vez que se fala ou se escreve sobre o Oriente no Ocidente. A dramatização da distinção própria dessa geografia imaginativa coloca o Oriental em posição não apenas de “outro” (tem-se homo arabicus, homo africanus, etc., sendo o “homem normal” o homem europeu do período histórico), mas também de vilão.
- Uma vez que seguia a estrutura dicotômica do “ocidente” e “oriente”, “familiar” e “estranho”, “próximo” e “distante”, especialmente para diferenciar os dois polos, o orientalismo limitava o que poderia ser pensado e falado sobre o Oriente. Por isso há tantas semelhanças na descrição do Oriente feita por diversos intelectuais ao longo dos séculos. A noção do Oriente como objeto de estudo também coloca o europeu em uma posição sempre afastada e de mero observador e que, portanto, deve reiterar as imagens já estabilizadas que o Ocidente tem do Oriente, e nunca as desafiar, para não sair da posição distante e objetiva.
- No seu início, o Oriente é explorado na literatura ocidental através da jornada, da fábula, do estereótipo e do confronto polêmico, que fazem com que o encontro entre leste e oeste seja experimentado por meio do embate ou da descoberta fantástica. Assim, os aspectos orientais que eram familiares eram desprezados pelo ocidente (Islã como versão fraudulenta do Cristianismo e Maomé como imitação de Jesus Cristo – domesticação do exótico), e os aspectos novos eram recebidos com prazer ou temor. Esse Oriente flutuante, que podia causar terror ou excitação ao ocidental, viria a ser restringido pelo orientalismo acadêmico.
- O orientalismo, ao em vez de conhecer o Oriente, os orientais e seu mundo, acaba os criando. É o Orientalismo como poder intelectual exercido em cima do objeto de estudo, no qual a forma dramática e a imagística culta se juntam no “teatro orientalista”. Os textos criam não apenas o conhecimento, mas também a própria realidade que parecem descrever e, com o tempo, esse conhecimento e essa realidade produzem uma tradição. E o Ocidente tratava do Oriente principalmente a partir de uma “atitude textual” até o momento que resolveu colocar as projeções sobre o Oriente em prática, na intenção de governá-lo. A dominação administrativa seria mais uma vez respaldada pelo Orientalismo, quando os orientalistas do final do século XIX passaram a estar ligados uns com os outros também do ponto de vista político. É a passagem do espaço oriental de “estrangeiro” para “colonial”.
- A pretensão de domínio colonial do oriente não justifica o orientalismo, mas sim o contrário. Antes da colonização se dar, há uma hegemonia do pensamento inferiorizante dos povos do oriente, o que culmina nas políticas para dominá-los.
- Discurso orientalista perpassava também por uma visão de que o Oriente moderno havia decaído e perdido uma grandeza clássica do passado, tomando o Ocidental orientalista, também, o papel de agente regenerador do Oriente decrépito em um ato de solidariedade histórica.
- Orientalismo também preocupava-se em firmar classificações para seus objetos de estudo, ou seja, os orientais (seja classificando as línguas orientais, as religiões, ou as características fenotípicas), o que acabou legitimando toda uma gama de estudos de “tipos genéticos” racistas perpetrados pelo ocidente em busca de expansão e dominação no Oriente, bem como o pensamento etnocêntrico. Esta atitude classificativa também gerou a estrutura comparativa sob qual o Oriente era observado, porém o comparativismo utilizado pelos orientalistas era mais avaliativo e expositório do que apenas descritivo. Assim, esse comparativismo tornou-se sinônimo da aparente desigualdade ontológica entre o Ocidente e o Oriente (“A própria designação de uma coisa como oriental envolvia um juízo de valor já emitido”, “Representam uma decisão sobre o Oriente, e não de modo algum, um fato da natureza”).
- Discurso orientalista é fechado em chavões de “Oriente” e “islã”, desprezando as materialidades históricas, políticas e econômicas em voga no momento na região (ideias de direita e esquerda, revoluções e mudanças não eram aplicadas no entendimento dos fenômenos ocorridos no Oriente, tudo era explicado pela figura do “Islã” ou pela sua reatividade ao próprio Ocidente).
- Há também uma tendência orientalista em conceber a humanidade como grandes termos coletivos ou como generalidades abstratas. Até mesmo Marx preferiu utilizar o Oriente coletivo para ilustrar sua teoria. Assim, o orientalismo se ampara bastante na visão do Oriente como vasta coletividade anônima, desconsiderando identidades humanas existenciais (“Nos filmes ou nas fotos de notícias, o árabe é sempre visto em grandes números. Nehuma individualidade, nenhuma característica ou experiência pessoal. A maior parte das imagens apresenta massas enraivecidas ou miseráveis, ou gestos irracionais (logo, desesperadoramente excêntricos” – pg. 291).
- Os pesquisadores orientalistas podiam ir ao Oriente e imitar o oriental, para então observá-lo e descrevê-lo. No entanto, a recíproca não era verdadeira, o Oriental não era capaz de imitar o ocidente, até mesmo pelo fato de que quando um ocidental viajava para o Oriente no século XIX, estava passeando pelos domínios territoriais e políticos de seu próprio país de origem (Inglaterra), ou por onde seu país de origem queria reconquistar o domínio (França). Por essa razão, o testemunho pessoal de viajantes e residentes ocidentais no Oriente podia ser tomado pelo orientalismo para se tornar uma definição impessoal feita por um exército de trabalhadores científicos do que era o Oriente. E, por essa razão também, o europeu só podia experienciar o Oriente sob uma lógica de dominação se quisesse preservar sua identidade europeia, dando origem ao estranho fenômeno do orientalista que despreza o próprio objeto de estudo (P/ entender a sociedade oriental, há de viver como um oriental. Para se manter europeu vivendo como um oriental, há de se agir com objetivos europeus de dominação. Vive como um oriental, mas o faz para conhecer o oriente pela perspectiva europeia: para dominá-lo mesmo sendo europeu).
- Tema da Europa ensinando ao Oriente o sentido da liberdade existe desde o século XIX. Os ocidentais justificavam sua presença e administração no Oriente como forma de impedir que o Islã impusesse seu culto à ignorância, ao despotismo e à escravidão sobre o povo árabe. Essa visão culmina na representação do árabe nos filmes e na televisão como um degenerado, supersexuado, capaz de intrigas astutamente tortuosas, mas essencialmente sádico traiçoeiro e baixo: papéis tradicionais do árabe no cinema são o de traficante de escravos, cameleiro, cambista, trapaceiro pitoresco.
-Sexualidade e exotismo do Oriente ilustrado pelas figuras femininas orientais da literatura europeia, que detinham sexualidade luxuriosa e ilimitada, feminilidade impressionante, mas inexpressiva, eram mais ou menos estúpidas e acima de tudo desejosas. Passa-se a associar, então, o Oriente ao escapismo da fantasia sexual e o “sexo oriental” vira mercadoria comum na cultura de massas.
- O orientalismo, com bases sólidas na pesquisa acadêmica e aplicação política, torna-se um sistema de apoio de um poder estarrecedor aos orientalistas, de modo tal que, escrever sobre o mundo oriental árabe é escrever com a autoridade de uma nação, com a certeza inconteste da verdade absoluta respaldada pela força absoluta.
-A falta de instituições educacionais de estudos árabes dentro do mundo árabe acaba por provocar o fenômeno de estudantes orientais que desejam se juntar aos orientalistas americanos, repetindo os seus chavões e dogmas orientalistas. Esse sistema de reprodução acaba tornando inevitável que o estudioso oriental que vai para o Ocidente acabe por utilizar a formação americana para sentir-se superior ao seu próprio povo, ao passo que ele é capaz de “controlar” o sistema orientalista que cria o próprio Oriente.
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Citações em destaque:
* “O conhecimento do Oriente, posto que gerado da força, em um certo sentido cria o Oriente, o oriental e seu mundo. Na linguagem de Cromer e Balfour, o oriental é apresentado como algo que se julga (com em um tribunal), algo que se estuda e se descreve (como em um currículo), algo que se disciplina (como em uma escola ou prisão), algo que se ilustra (como em um manual zoológico). A questão é que em cada um desses casos o oriental é contido e representado por estruturas dominantes. De onde vêm essas estruturas? [...] O orientalismo, portanto, é um conhecimento do Oriente que põe as coisas orientais na aula, no tribunal, prisão ou manual para ser examinado, estudado, julgado, disciplinado ou governado.” (Páginas 50 e 51)
* “Será que podemos dividir a realidade humana, como ela na verdade parece estar dividida, em culturas, histórias, tradições sociedades e até raças claramente diferentes, e sobreviver humanamente às consequências? Quando falo em sobreviver humanamente às consequências, quero com isso questionar se há algum modo de evitar a hostilidade expressada pela divisão dos homens e, digamos, ‘nós’ (ocidentais) e ‘eles’ (orientais). Pois essas divisões são generalidades cujo uso, histórico e de fato, foi sublinhar a importância da distinção entre alguns homens e alguns outros, normalmente com intenções não muito admiráveis.” (Página 56)
* “O Oriente é assim orientalizado, um processo que não apenas o marca como a província do orientalista como também força o leitor ocidental não-iniciado a aceitar as codificações orientalistas (como a Bibliothèque em ordem alfabética de D’Herbelot) como o verdadeiro Oriente. Em poucas palavras, a verdade torna-se uma função do julgamento culto, e não do próprio material, que com o tempo deve até mesmo a sua existência ao orientalista” (Página 77)
* “Parece ser uma falha humana comum preferir a autoridade esquemática de um texto às desorientações de encontros diretos com o humano. Será, porém, que essa falha está sempre presente, ou existirão circunstâncias que, mais que outras, tornam mais provável a prevalência da atitude textual?” (Página 102)
* “Quando o mundo se vê perante questões momentosas e geralmente importantes – que envolvem a destruição nuclear, os recursos catastroficamente escassos e as exigências humanas sem precedentes de igualdade, justiça e paridade econômica –, as caricaturas populares do Oriente são exploradas por políticos cuja fonte de abastecimento ideológico é não somente o tecnocrata subletrado, mas também o orientalista superletrado.” (Página 117)
* “O Oriente que aparece no orientalismo, portanto, é um sistema de representações enquadrado por todo um conjunto de forças que introduziram o Oriente na cultura ocidental, na consciência ocidental e, mais tarde, no império ocidental. Se esta definição do orientalismo parece mais política que outra coisa, isso acontece apenas porque acredito que o próprio orientalismo foi um produto de certas forças e atividades políticas.” (Página 209)
* “Mas, como todas as capacidades enunciativas, e os discursos que elas possibilitam, o orientalismo latente era profundamente conservador – ou seja, dedicado à própria conservação. Transmitido de uma geração a outra, era uma parte da cultura, era tanto uma linguagem sobre uma parte da realidade quanto a geometria ou a física.” (Página 228)
* “(...) a questão real é se pode de fato haver uma representação verdadeira de qualquer coisa, ou se todas as representações, porque elas são representações, implantam-se primeiramente na linguagem e depois na cultura, nas instituições e no ambiente político do representador.” (Página 277)
* “Bom. Mas como se conhecem as ‘coisas que existem’, e em que medida as ‘coisas que existem’ são constituídas pelo que conhece?” (Página 305)
* “Há uma vasta padronização do gosto na região, simbolizada não só por aparelhos transistorizados, blue jeans e Coca-Cola, mas também pelas imagens do Oriente fornecidas pelos meios de comunicação de massas americanos e consumidas sem pensar pela massa de telespectadores. O paradoxo de um árabe vendo a si mesmo como um ‘árabe’ do tipo produzido por Hollywood é apenas o mais simples resultado daquilo que estou a que estou me referindo” (Página 329)
* “Sem ‘o Oriente’ haveria estudiosos, críticos, intelectuais e seres humanos para os quais as distinções raciais, étnicas e nacionais seriam menos importantes que o empreendimento comum de promover a comunidade humana” (Página 332)