Nelson Franco 31/12/2016
A absolvição de um anjo caído.
Admito que o Romantismo nunca foi uma de minhas escolas literárias prediletas. Nosso relacionamento consiste de altos e baixos, surpresas e decepções. Apesar disso, "Lucíola" conquistou o seu lugar entre tais pontos altos e, consequentemente, um lugar especial em minha estante.
No entanto, tal destaque pessoal entre os títulos da escola romântica não é uma surpresa para aqueles que conhecem o meu gosto literário, afinal, "Lucíola" localiza-se em plena transição dos românticos para a escola realista, pela qual possuo profunda estima. Se, por um lado, essa obra alencariana possui uma história ambientada em locais familiares ao grande público, narrada como uma confissão e a qual tem um relacionamento amoroso como tema central, também é munida de um forte criticismo.
Tal crítica se dá pela inversão de papéis ocorrida entre Lúcia e a elite carioca. À medida que a imagem de cortesã devassa e gananciosa é desconstruída gradualmente pelo fluxo narrativo, o leitor é capaz de reconhecer em Lúcia um caráter e uma integridade inestimáveis. Em contrapartida, a obra desvela toda a arrogância, crueldade e hipocrisia das altas rodas sociais do Rio de Janeiro, revelando-as em decadência ética.
Esse processo de desconstrução e reconstrução da imagem das personagens é oferecido à contemplação pelo processo de aproximação e apaixonamento de Paulo e Lúcia, o que faz completo sentido se lembrarmos que a história nos é apresentada sob a perspectiva do recifense. Recém-chegado na capital fluminense, ao jovem são logo apresentadas as convicções de uma elite perfeita e de uma cortesã inescrupulosa, mas, ao longo de sua imersão na vida social da cidade, ele percebe que tais ideias se mostram falsas. Ou seja, apenas através da experiência e de sua atenção às relações sociais locais, Paulo foi capaz de discernir os boatos da realidade. Não seria essa uma reafirmação do provérbio popular de que não se deve julgar um livro pela capa?
Por fim, cumprindo o seu papel como obra romântica, "Lucíola" guia sua protagonista à absolvição por virtude de seus sentimentos genuínos por Paulo, responsável por lhe dar a chance de demonstrar o seu verdadeiro caráter, libertando-a da malevolência daqueles que a cercavam e a julgavam ironicamente como um exemplo de degradação moral.
"Ah! Esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro da praça, que não pode recusar quem chega. Esses objetos, esse luxo, que comprei muito caro também, porque me custaram vergonha e humilhação, nada disso é meu. Se quisesse dá-los, roubaria aos meus amantes presentes e futuros; aquele que os aceitasse seria meu cúmplice. Esqueci que, para ter o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem me aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se reduzisse à miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre. Enquanto abrir a mão para receber o salário, contando os meus beijos pelo número das notas do banco, ou medindo o fogo das minhas carícias pelo peso do ouro; enquanto ostentar a impudência da cortesã e fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos meus braços sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que me aceite, se lhe suplicar a esmola de um pouco de afeição, oh! Então o meu contato será como a lepra para a sua dignidade e a sua reputação. Todo o homem honesto deve repelir-me!"
- Maria da Glória/ Lúcia. Páginas 68 e 69.