spoiler visualizarCinMeireles 26/11/2023
Maravilhoso reler um romance que a gente leu há 20 anos atrás e perceber que hoje enxergamos como tóxico algo que na adolescência nos parecia lindo e romântico.
Lucíola é, para mim, um livro maravilhoso e ao mesmo tempo odiável. A narrativa de José de Alencar é fluida e envolvente, mesmo com seus diálogos afetados e sua narrativa excessivamente dramática, típicos do período em que foi escrito. Sua primeira metade, que aborda o início do relacionamento entre Lúcia e Paulo, é de longe minha parte preferida (e a que eu mais me lembrava): Lúcia, apesar de muito jovem, é uma mulher independente, sarcástica, desiludida com a vida e com a sociedade, dona de si mesma, e que faz o que precisa fazer para conseguir o que quer. Paulo se apaixona por ela desde o primeiro momento, e esse sentimento aliado ao preconceito faz com que ele muitas vezes a despreze e chegue mesmo a odiá-la, criando entre eles uma relação intensa tempestuosa que vai do paraíso ao inferno em vários momentos.
Mas é na segunda metade do livro que as coisas desandam e que, para mim, a história segue para um rumo horrível: Lúcia, apaixonada, acredita que ceder ao seu desejo por Paulo é uma forma de corromper o amor dos dois, e se refugia em uma castidade forçada e em uma profunda religiosidade que beiram o delírio. Retomando seu nome de batismo - Maria da Glória - ela se isola da sociedade e vai viver com a irmãzinha em uma casa simples, retrocedendo a um estado mental quase infantil, em uma tentativa desesperada de recuperar a pureza de sua alma. Em seus delírios de pecado e redenção, chega a implorar para Paulo se casar com sua irmã, acreditando que isso de alguma forma redimirá o amor dos dois - proposta essa que Paulo recusa imediatamente, graças a Deus.
Porém, não há humilhações, isolamento ou pobreza que sejam capazes de redimir uma ex-prostituta: nem a sociedade, nem Paulo, nem a própria Lúcia, podem apagar o passado. Lúcia, tentando desesperadamente se esconder atrás de camadas de inocência e pureza, continua a sentir um profundo desejo carnal por Paulo - desejo esse que reaparece em momentos de fraqueza ou vulnerabilidade, e que Paulo não hesita em tentar aproveitar. Não resta para ela outra forma de redenção que não seja a morte - e essa morte se dá, de forma bem simbólica, através do fruto de seu pecado, o aborto involuntário de um filho gerado por ela e Paulo em seus dias de prostituta.
Não acho que havia, de fato, uma dualidade em Lúcia, como Paulo enxergava - a fogosa prostituta Lúcia X a pura e inocente Maria da Glória. O que havia ali era uma única mulher, com seus desejos e necessidades como qualquer outra mulher, e que, mergulhada em crenças sociais de pureza e pecado, passa desesperadamente a buscar uma virgindade e uma castidade que ela não tinha. Lúcia nega seus desejos, mergulha desesperadamente em uma religiosidade exacerbada, e passa a viver uma vida de provação para de alguma forma purificar a si mesma e a seu amor; enquanto de Paulo - tão corrompido quanto ela, assumido frequentador da noite, que fazia do uso de prostitutas um hábito desde muito jovem - não é esperada nem cobrada redenção alguma. Naquele mundo, sexo e sensualidade não são pecados para os homens - mas, para as mulheres, é uma sentença de morte e danação eterna. Não há perdão ou salvação possíveis para Lúcia.
Lucíola é um livro surpreendentemente bom, considerando-se a raiva que faz o leitor passar. Mais um dos livros que, embora sejam estudados na escola, eu acho muito mais aproveitável para leitores adultos e com uma experiência - de vida e literária - mais vasta.