spoiler visualizarAline Sassi 06/11/2016
O pecado como personagem
A trama se passa na Fazenda Santa Maria. É importante destacar que este espaço, psicologicamente, representa um lugar sem leis ou ameaças jurídicas ao seu alcance. Parece estar suspenso ao Estado e país ao qual pertence. Como menciona um dos personagens, Santa Maria é “quase um faroeste”. Ali, só repercute a lei do homem bruto. E é por isso que, neste espaço, o homem se aproxima muito dos animais, uma vez que o foco dos personagens restringe-se ao ataque e à defesa.
Lena, protagonista da obra, parece ser aquela a quem o título tenta, a todo custo, capturar. A possibilidade do pecado a persegue por todos os lados, até as paredes e móveis da casa parecem perscrutá-la como pecadora, como é o caso do oratório onde se encontram os restos de farrapos de Guida. A cama onde a morta dormia com o marido e onde, hoje, Lena dorme (ou tenta dormir) parece acusá-la o tempo todo, não permitindo que ela descanse seu corpo sobre seu colchão, sem que se sinta uma pecadora; uma intrusa. Por duas vezes, a personagem parece dialogar com o título da obra, questionando-se em um insight: “Será que meu destino é pecar?”
Enquanto Lena fugia do que poderia ser seu próprio destino, Paulo, seu marido, traz muitos traços psicanalíticos à obra. Ao mesmo tempo em que demonstra pavor e vergonha pela possibilidade da mulher estar o traindo, ele busca este pecado o tempo todo, levantando hipóteses, assimilando pseudo-certezas sobre ter sido traído, baseado em perseguições à mulher e, provavelmente, em um trauma passado com Guida, sua ex-esposa, que foi cruelmente atacada por cães quando Paulo a viu beijando Maurício, o irmão. Sempre que algum personagem fala em Guida para Paulo, a impressão que se tem é de uma violência quase física, tamanha mudança se dá na expressão facial do personagem, que muda de cor, tem seu olhar contemplativo no vazio e balbucia o nome da mulher morta. Agora, ele vivencia todo o sentimento terrível que deveria estar enterrado com Guida em um mausoléu, transferindo o trauma advindo de sua experiência terrível para Lena, numa obsessão pelo pecado que transtorna a vida da moça.
Maurício é a personificação do pecado e da vaidade. Talvez seja a concentração de alguns dos sete pecados capitais em um só homem. Ironicamente, é aquele que mais trava diálogos com o Padre Clemente, que tenta, a todo custo e sem bons resultados, persuadi-lo a não seduzir as mulheres de sua vida para a estrada da perdição. Mauricio, no entanto, não demonstra culpa alguma e diz, em uma das falas marcantes do livro, que “nasceu unicamente para amar”. Dono de uma beleza descomunal, Mauricio está acostumado a ter todas as mulheres que deseja e diz-se pela fazenda que “aquela que experimenta seu beijo nunca mais esquece”. Eis que experimenta, pela primeira vez, o sentimento de desprezo quando Lena renega seu amor, carregando a cruz da luta contra o pecado. Mauricio é uma figura central dessa obra, uma vez que aponta o caminho da perdição de praticamente todos os personagens.
Lídia é a prima de Mauricio e Paulo, e também vive na fazenda. Sua aparência de beleza altiva e dura, “quase máscula”, como pontuado pelo narrador, choca-se com sua fragilidade psíquica, uma vez que a personagem beira à loucura. Lídia tem visões de Guida e gosta de amedrontar Lena, dizendo que a esposa morta encontra-se viva, ou é um fantasma que assombra a fazenda. Lídia aparece na narrativa de uma forma que sempre denota desespero e loucura. Seu jeito de ser, tempestuoso, faz com que esta mulher pareça estar sempre prestes a utilizar da violência física para descarregar sua angústia insana e, como sempre, para cima de Lena, que, sendo antítese de Lídia, aparenta uma extrema fragilidade física em contraposição à grande fortaleza psíquica, que lhe permite contornar por qualquer meio cabível a possibilidade do pecado, que ela sabe – a levaria à perdição.
Dona Consuelo é mãe de Paulo e Maurício e, agora, sogra de Lena. Mulher amargurada pelo tempo, parece ser aquela que empresta o tom cinza e nublado ao campo psicológico em que a obra se desenrola. Carrega a grande dor de ter perdido seu único neto, aquele que foi capaz de colorir um pouco sua triste vida, de forma trágica: com a espinha quebrada em uma queda de cavalo. Com o novo casamento de Paulo com Lena, a mulher sente nova esperança de seu coração com a possibilidade de outro neto. Com a dura recusa de Lena em propiciar-lhe este presente, Dona Consuelo passou a nutrir uma mágoa pela nora que logo se transformou em um ódio tão vivo, que parecia devorar-lhe o peito e torná-la cega, trazendo interpretações turvas às cenas que presenciava.
Netinha é uma personagem que, do ápice da nobreza humana, encontrou seu declínio, quando conheceu a maldade de seus semelhantes. Surge no começo da obra com uma visão otimista e benevolente sobre aqueles que a cercam, mas, com a convivência nas terras de Santa Maria, caiu nas trevas da perdição do lugar: apaixonou-se por Mauricio e conheceu o pecado da luxúria; nutriu ódio pela irmã; perdeu a bússola dos sentimentos bons que a guiavam. No final da narrativa, apresenta-se com um olhar perdido. Com uma índole que não podia sustentar a maldade, como os outros personagens, Netinha se atira no lago do alto de uma pedra. As águas se abem para recebê-la e depois se fecham para guardá-la, formando bolhas e retomando seu aspecto natural, tranquilo e sereno. A personagem encontrou seu refúgio final na natureza.
Com a morte de Netinha, os personagens consumidos pelo ódio e vaidade conhecem a possibilidade da morte. Sentem que não são tão poderosos quanto aparentam, uma vez que todos os seres tem sua finitude. A ideia da morte da menina como castigo divino surge nos personagens, freiando-lhes o ódio, no final da trama, só que momentaneamente. Santa Maria parece ter raízes fundas de desconsolo que sempre ressurgem, entrelaçando-se àqueles personagens, prendendo-lhes à única visão possível: a do pecado.