Ana Usui 19/09/2022
Para os que são verdadeiramente dedicados
Ler Problemas de Gênero é uma tarefa árdua e não sei direito a quem culpar, Judith Butler por ser prolixa, utilizar uma linguagem muito rebuscada e elitizar o texto, ou a equipe de tradução e edição por optar por certas palavras em detrimento de outras e não traduzir alguns termos estrangeiros (e sim, eu entendo que alguns termos filosóficos possuem significados específicos, maaaas muitos outros não, como a palavra différence por exemplo).
Só pra dar uma ideia: eu não estava entendendo nada e pesquisei um guia de como ler Butler, descobri que seria bom ler Foucault primeiro. Assim fiz, mas não foi o suficiente, li uma obra sobre gênero e performance na educação, alguns artigos sobre a área e mesmo assim tive dificuldades. No decorrer do livro precisei do auxilio constante do dicionário e fui grata por já ter uma boa base de estudos feministas. Mas se você quer ler esse livro e realmente entender recomendo de verdade uma boa base em: feminismo (O Segundo Sexo de Beauvoir, Wittig e Irigaray são bastantes citadas), psicanálise (Lacan e Freud, sendo essencial entender o que é recalcamento e o complexo de édipo) e um pouco de filosofia (Foucault e Hegel, especialmente a história da sexualidade; e a dialética do senhor e escravo).
Entretanto, uma vez que você passa dos dois primeiros capítulos a leitura finalmente engrena. O importante é pegar os conceitos principais que a Butler traz como argumentos para provar o seu ponto, que nada mais é que: gênero é uma performance, um mito cultural que precisa ser treinado constantemente e regulado pelos discursos e aparatos de poder.
A Butler começa o livro questionando o feminismo e sua constante inclinação para a busca filosófica das diferenças entre os “sexos/gêneros”, ela afirma que o feminismo, em sua tentativa de expor e rechaçar o patriarcado, apenas reafirma o conceito binário e acaba por excluir em sua própria análise diferentes tipos de mulheres/pessoas. A autora aponta que o feminismo deixou há muito tempo de ser uma questão das mulheres contra o patriarcado para ser uma oposição das minorias e/ou dos desprivilegiados ao poder vigente hegemônico.
Ou seja, não existe uma mulher universal, que sofra as mesmas condições e abusos em todos os países e culturas (algo que já tem sido visibilizado pela interseccionalidade). Para chegar nessa conclusão de que o feminismo não é *para as mulheres*, Butler percorre um longo caminho para evidenciar que sexo biológico e gênero são a mesma coisa. Não existem. São mitos. Ficções da cultura.
E aqui a galera pira. “COMO ASSIM NÃO EXISTE SEXO BIOLOGICO?!!!!”
Pois é, doidera não?
Mas Butler (quando compreendida rsrsrsrs) nos convence de que realmente não existe. É tudo mito da carochinha. Ter uma vagina ou pênis não define seu comportamento, seus sonhos e aspirações, seus traços de personalidade. Nunca definiu, temos isso provado de novo e de novo em vários campos acadêmicos. A única diferença reside em carregar ou produzir uma criança. Que não muda em NADA sua pessoa. Quem define se você pode ou não trabalhar, se você deve ou não ficar em casa, se é bom ou não para essa ou aquela função, é a sociedade. Ou seja... Se a ÚNICA DIFERENÇA ESSENCIAL entres os sexos é ter uma criança, porque nos deixamos moldar completamente por essa única função?
E as pessoas inférteis? E as pessoas que adotam? E as evoluções médicas que permitem casais terem filhos? Ser mulher é pintar a unha? É ter cabelo comprido? É usar saia? É falar demais? É ser delicada? Ser homem é ter barba? É ser forte? É chorar menos? E desde quando nosso físico nos restringiu dessa maneira? Qual cromossomo é responsável por isso? Em que aspecto minha genitália me impede disso ou daquilo?
A verdade é que não há resposta plausível para essas perguntas, o gênero existe por causa do sexo biológico, mas quando pensamos em sexo biológico já estamos pensando em gênero. Então quem veio primeiro? O ovo ou a galinha?
Nessa jornada tortuosa da Butler, percorremos pontos feministas, filosóficos, psicanalíticos e culturais para chegamos na conclusão de que o gênero é uma ficção que nos contamos, desenvolvemos diversos aparatos para ocultar essa ficção e então nos esquecemos de sua origem, passamos então a viver em um sistema regulado de opressão que vive através de sua mentira.
A leitura vale muito a pena para quem estuda tanto feminismo quanto estudos queer, mas exige bastante força de vontade. Caso não seja sua vibe, recomendo a leitura de obras posteriores ao pensamento da Butler, a compreensão será mais fácil e você chegará no mesmo ponto. Dizem por aí que Corpos que Importam é mais acessível e responde alguns dos pontos que Problemas de Gênero levanta, espero ter uma melhor experiência nele (assim que me recuperar desse trauma literário, pq vou te contar...).
~Agora vou ler coisas leves e felizes porque ninguém é de ferro~