Lista de Livros 14/01/2020
Lista de Livros: As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen – Michael Löwy
Parte I:
“A “boa vontade” positivista enaltecida por Durkheim e seus discípulos é uma ilusão ou uma mistificação. Liberar-se por um “esforço de objetividade” das pressuposições éticas, sociais ou políticas fundamentais de seu próprio pensamento é uma façanha que faz pensar irresistivelmente na célebre história do Barão de Münchhausen, ou este herói picaresco que consegue, através de um golpe genial, escapar ao pântano onde ele e seu cavalo estavam sendo tragados, ao puxar a si próprio pelos cabelos... Os que pretendem ser sinceramente seres objetivos são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais profundamente enraizadas. Para se liberar destes “preconceitos” é necessário, antes de tudo, reconhecê-los como tais: ora, a sua principal característica é que eles não são considerados como tais, mas como verdades evidentes, incontestáveis, indiscutíveis. Ou melhor, em geral eles não são sequer formulados, e permanecem implícitos, subjacentes à investigação científica, às vezes ocultos ao próprio pesquisador. Eles constituem o que a sociologia do conhecimento designa como o campo do comprovado como evidente, um conjunto de convicções, atitudes ou ideias (do pesquisador e de seu grupo de referência) que escapa à dúvida, à distância crítica ou ao questionamento.
É suficiente examinar a obra dos positivistas, de Comte e Durkheim até nossos dias, para se dar conta de que eles estão inteiramente fora da condição de “privados de preconceitos”. Suas análises estão fundadas sobre premissas político-sociais tendenciosas e ligadas ao ponto de vista e à visão social de mundo de grupos sociais determinados. Sua pretensão à neutralidade é às vezes uma ilusão, às vezes um ocultamento deliberado, e, frequentemente, uma mistura bastante complexa dos dois. É inútil insistir, aliás, neste aspecto, já que os positivistas mais lúcidos como Karl Popper mostraram, eles próprios, o ridículo desta doutrina tradicional da ciência social sem preconceitos e sem prenoções.
Dito isto, há um “núcleo racional” na problemática positivista: a vontade de conhecimento, a investigação obstinada da verdade, a intenção de verdade é uma condição necessária da prática científica. Se a investigação é deliberadamente submetida a outros fins considerados mais importantes do que a verdade — imperativos éticos, políticos ou simplesmente pecuniários —, ela está condenada de antemão do ponto de vista de sua validade cognitiva, de seu conteúdo de conhecimento. Neste caso, ela deixa de ser ciência para se tornar outra coisa: sermão, mistificação, propaganda, publicidade etc. Sem ter intenção de buscar a verdade, o discurso não tem conteúdo científico: ele se torna simples instrumento a serviço de objetivos extracientíficos. Esta condição — aliás quase tautológica: para ter acesso à verdade é necessário querer ter acesso à verdade — é necessária mas de forma alguma suficiente para assegurar a objetividade científica. Ela elimina os determinantes exteriores diretos, mas não o condicionamento estrutural (sociocultural) do pensamento; ela permite afastar a mistificação sicofanta, mas não o ponto de vista de classe.”
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Parte II:
“Na realidade, a problemática de uma investigação científico-social não é somente um corte do objeto: ela define um certo campo de visibilidade (e de não-visibilidade), impõe uma certa forma de conceber este objeto, e circunscreve os limites de variação das respostas possíveis. A carga valorativa ou ideológica da problemática repercute, portanto, necessariamente sobre o conjunto da pesquisa e é normal que isso seja questionado pelos cientistas que não partilham estes valores ou pressuposições: eles se recusam, com razão, a partir de seu ponto de vista, a se situar sobre um terreno minado e aceitar um campo teórico que lhes parece falso de antemão.”
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Parte III:
“Não se pode estudar a relação ideologia/ciência no marxismo sem fazer referência ao “fenômeno estalinista”, e em particular a suas manifestações durante os anos 1948-53. Evidentemente, o estalinismo é um fato social e político que ultrapassa amplamente a figura de Joseph Vissarianovitch Stalin e seu “culto da personalidade”: trata-se da formação na URSS de uma camada social burocrática, proveniente de proletariado e/ou do movimento operário russo, que se formou como uma categoria separada com interesses e práticas sociais distintas. Em nossa opinião, esta camada não é uma classe no sentido marxista do termo (definida por seu lugar no processo de produção), mas antes um estamento (Stand) ou “estado” (no sentido dos “três estados” na França antes de 1789), definida por critérios político-ideológicos, de forma análoga à ordem clerical das sociedades pré-capitalistas. Nos dois casos — ordem social burocrática pós-capitalista e ordem social do clero pré-capitalista — o poder e os privilégios são fundamentados sobre a participação em uma instituição político-ideológica (o Partido, a Igreja); de onde a importância crucial do monolitismo ideológico, da perseguição às heresias, das excomunhões e do dogmatismo escolástico. A doutrina estalinista é a expressão do ponto de vista desta camada burocrática. Como esta não constitui uma classe social, ela não é capaz de criar uma nova visão social de mundo: ela se contenta com a deformação/mascaramento do marxismo e sua transformação em ideologia conservadora de um poder, de um sistema social e político estabelecido, da dominação de um Stand social privilegiado. A burocracia produz assim um “marxismo vulgar” análogo à “economia política vulgar” do pensamento burguês, isto é, diretamente subordinada a seus interesses políticos e sociais. Ao mesmo tempo, para exercer sua hegemonia, a burocracia deve necessariamente apresentar seu ponto de vista como sendo, na realidade, o do proletariado: este desvio, esta distorção vão criar para ela a necessidade de uma ocultação ideológica: a burocracia deve encobrir inteiramente aos trabalhadores (e às vezes a si mesma, por um processo de automistificação) a defasagem entre sua perspectiva e aquela do proletariado. Nascido na URSS, o estalinismo se manifesta também, evidentemente, como reflexo ideológico, no movimento comunista organizado em torno da URSS, o que lhe dá a característica de um fenômeno a nível mundial.”
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Parte IV
“A realidade social, como toda realidade, é infinita. Toda ciência implica opção. Como o reconhecia Max Weber, esta opção é nas ciências sociais e históricas ligada a certos valores, pontos de vista preliminares e pressuposições axiológicas, que determinam, em ampla medida, as questões que se colocam em relação à realidade social, à problemática da pesquisa. Entretanto, como procuramos demonstrar, as visões sociais de mundo e os valores (que fazem parte dela) intervém também na análise empírica da causalidade, na determinação científica dos fatos e de suas conexões, assim como na última etapa da pesquisa: a interpretação geral e a construção das teorias. Em outras palavras: é o conjunto do processo de conhecimento científico-social desde a formulação das hipóteses até a conclusão teórica, passando pela observação, seleção e estudo dos fatos, que é atravessado, impregnado, “colorido” por valores, opções ideológicas (ou utópicas) e visões sociais de mundo.
Querer, nestas condições, aplicar ao domínio das ciências humanas o modelo de objetividade científico-natural advém de uma ilusão ou de uma mistificação; esta consiste, de uma forma ou de outra, em apelar ao cientista para que ele abandone seus valores, seus “preconceitos” ou sua ideologia, isto é, que ele aja segundo o “princípio do Barão de Münchhausen” (como vimos, a objetividade “institucional” exaltada por Popper não é senão uma variante desta démarchè). É, portanto, inteiramente em outra direção que é necessário se orientar para explicar as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo dos fatos sociais, históricos e culturais.
Esta direção é a de uma sociologia crítica do conhecimento, que possa explicar as relações entre as classes ou categorias sociais e as ciências da sociedade.”
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