Dhiego Morais 13/07/2020O diário de NishaPassos apressados em direção à porta principal. O som de clique garante que a porta foi trancada. O lápis que há poucos instantes rabiscava no diário escorrega das mãos pequeninas e cai sobre a mesa da cozinha. Dadi corre em silêncio até as crianças, pondo o dedo indicador junto à boca. Não faça barulho. Um sinal rápido apontando para a dispensa, embaixo dos armários. Em poucos segundos três formas se espremem no espaço, fechando pouco antes do estrondo da porta da sala se abrindo, do vidro de uma das janelas estourando e dos passos e vozes violentas irrompendo o interior antes seguro de seu lar. O país realmente se dividiu.
“Quando você divide as pessoas, elas escolhem lados.”
O Diário de Nisha é mais um lançamento da Caveirinha para o selo Darklove, responsável pela publicação de histórias escritas por autoras excepcionais. Veera Hiranandani, a autora, foi criada nos Estados Unidos, filha de uma norte-americana judia e de um pai oriundo de uma família indiana e hindu. Com um berço cultural tão impressionante, Veera decidiu narrar a história fictícia baseada nas experiências reais de seu pai, tios e seus avós, que viveram um dos momentos mais difíceis de meados do século XX: a partição da Índia. Atravessar a fronteira de Mirpur Khas em busca de segurança, verdadeiramente inspirou a autora a contar a história da família de Nisha.
Nisha é uma garotinha de doze anos que vive com seu pai, um médico, seu irmão Amil, sua avó paterna – a Dadi – e com Kazi, que cozinha e realiza outras tarefas domésticas para a família. É por meio de seu diário que os leitores acompanharão os acontecimentos desenrolados a partir de 14 de julho de 1947 até meados de novembro do mesmo ano. Nisha é doce, de família abastada, e possui um temperamento fácil de lidar. Por ser bastante observadora e curiosa, pouco escapa de seus olhos e da reflexão de sua mente jovem.
Antes de ler O Diário de Nisha, admito conhecer muito pouco a respeito da história da Índia, tampouco ainda sobre a partição do país, que em 17 de agosto de 1947 se dividiu, assim como as populações religiosas de hindus, muçulmanos e sikhs, para formar a Índia, como a conhecemos e o Paquistão. Indubitavelmente um momento de muita dor para milhares de famílias.
Apesar de ser um romance epistolar, O Diário de Nisha possui uma narrativa admiravelmente fluida. Dotado de capítulos curtos, a leitura prossegue sem atravanco e em pouco tempo o leitor percebe que muito já foi lido. É bastante interessante observar pelos olhos de Nisha os momentos que antecederam a divisão da Índia, e como todo esse obstáculo político foi encarado e absorvido pela mente juvenil de nossa protagonista. Uma crise político-social e religiosa é encarada com criticidade pela mente de um adulto. Todavia, a mesma crise pode ser encarada de maneira completamente diferente pelas crianças. Ter consciência de como tudo isso é observado pelos mais jovens muda em muito a nossa visão sobre as razões e justificativas para tamanha cisão social.
Amil é irmão de Nisha e, portanto, divide uma série de cenas no romance. Praticamente ignorado pelo pai, pelos relatos de sua irmã em seu diário percebemos algo além do conflito político da Índia: os conflitos familiares, principalmente de uma família privada da figura materna e que herda um passado cultural diverso. Companheiro de Nisha, a força de ambos é o que os sustenta para encarar a tempestade que se aproxima.
“Não consegui chorar. Eu me sentia como uma folha seca esvoaçando ao vento, sem saber onde pousaria. Só assenti e flutuei para longe dele. Se me despedisse, seria um adeus de verdade, um adeus para sempre.”
Como leitor, preciso dizer que a história de Veera Hiranandani não desce pela garganta sem dificuldade. É duro observar como a diversidade, como as diferenças podem ser gatilhos inaceitáveis para a sociedade. A crença na superioridade e o fato de não se aceitar que vivam em harmonia povos religiosos distintos é capaz de promover a ruptura de um país inteiro. A fuga, a busca pelo “seu lado”, os surtos de violência contra hindus, muçulmanos e sikhs, a incapacidade de ajudar o próximo; consequências presentes neste livro. Caminhadas em busca de segurança, de um novo lar, enfrentando a sede inclemente e a fome atroz. Não há beleza em um mundo sem esperança e em um povo em desespero.
Seguimos por 4 meses que abarcam muito além de um conflito político. Vivemos sob a pele de Nisha e de sua família um átimo de um instante doloroso e que perdura em consequência até hoje. Importantíssimo, sem dúvidas, para todos os leitores que buscam na literatura o reflexo de seus mundos e de seu próprio coração. Quando a última página se vira, saímos leitores distintos de quando começamos e carregamos conosco fragmentos do que a família de Nisha nos ensinou.
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