Larissa3225 04/05/2021DesconfortávelDurante toda a leitura deste livro, algo me parecia errado. Era como se faltasse alguma coisa a ele e à escrita. Ao ler uma outra resenha aqui no Skoob, eu entendi o que me incomodava tanto: a impessoalidade da escrita.
A história de Jiyoung é narrada de uma forma distante e indiferente, que incomoda. Por parte do narrador, não existe nenhum tipo de revolta, incômodo ou nem mesmo crítica direcionados às diversas microagressões (por vezes, não tão micro) sofridas por Jiyoung. Esses sentimentos ficam por conta do leitor, que depende de sua percepção de mundo para notar a violência e o absurdo das variadas situações vividas pela jovem. E como mulher, é impossível não se reconhecer (ou a conhecidas) em muitas das situações relatadas: a presença de um tarado nos arredores da escola, o medo de andar à noite no transporte público, a subvalorização do trabalho doméstico, as exigências em torno da maternidade ou ainda a relação com os sogros.
Contudo, acredito que para um leitor mais desatento, a falta de censura por parte do narrador pode levá-lo a tomar estas situações como normais, oriundas de boas intenções ou até aceitáveis. E isso, de forma alguma, é uma crítica negativa. A forma como a autora Cho Nam-Joo escreve (estilo que é explicado ao final do livro) engrandece a sua obra. A ausência de desconforto ou de críticas por parte do narrador para com as experiências de Jiyoung nada mais é do que um reflexo da banalização do machismo na sociedade. Muitas das situações representadas no livro são tão corriqueiras que, ao passar por elas, eu não me surpreendia e o primeiro pensamento que me vinha era "é, isso acontece". E a cada vez que esse pensamento se repetia, o meu desconforto aumentava, por ver tão claramente o quão habituada eu estou com tais situações.
Até que chegamos à parte final. E que final!
Para mim, foi estranho me emocionar mais com a história da esposa do tal psiquiatra do que com a história da própria Jiyoung. Agora, enquanto escrevo esta resenha e penso mais sobre tal fato, acredito ter chegado numa explicação. Por mais que Jiyoung não seja compreendida pelo esposo ou pelos familiares, ao ter sua saúde mental afetada, Jiyoung encontra uma espécie de compreensão por parte do psiquiatra. Ao nos informar de suas percepções acerca do diagnóstico da jovem, o médico demonstra entender que o distúrbio apresentado pela mulher, em grande parte, tem origem nas diversas agressões sofridas por esta. Agressões que estão íntima e unicamente ligadas à condição de ser mulher. Porém, esta compreensão não se estende à sua própria esposa. O homem, enquanto esposo, falha ao não perceber que muito pouco separa Jiyoung de sua própria mulher.
E ao chegarmos ao último parágrafo, temos o golpe final. Apesar de compreensivo para com sua paciente, o médico não é diferente das muitas pessoas que contribuíram para o atual estado mental de Jiyoung: cego ao sofrimento da própria mulher, incapaz de elogiar uma colega de trabalho por algo além de sua aparência, simpatia e gentileza, e determinado a garantir que a próxima contratada seja solteira, afinal, estas não se ausentam do trabalho por conta de uma gravidez.
Kim Jiyoung Born 1982 foi uma baita leitura. Apesar de desconfortável, foi uma das leituras mais impactantes que fiz nos últimos tempos. Talvez não seja um livro para todos, a escrita seca pode afastar alguns leitores, enquanto o final pouco conclusivo pode dividir opiniões. Contudo, este é um livro que pode ser classificado como necessário. É um retrato preciso das agressões sofridas pelas mulheres na sociedade, sem exageros e sem suavizações. E embora Jiyoung seja uma mulher coreana, nascida nos anos 80, sua história representa a vida de tantas outras.