HigorM 30/05/2023
"LENDO PULITZER": sobre a brevidade da vida
De todos os livros presentes no Prêmio Pulitzer, o que eu mais tinha vontade de ler era, sem dúvidas, "Gilead", e justamente por isso, demorei anos para encará-lo, pois não queria me frustrar com algo talvez superestimado pela crítica e leitores. Anos depois, mais preparado e com os ânimos alinhados, fiquei bastante frustrado com o que encontrei.
A ficção cristã - um gênero literário muito sólido nos Estados Unidos, diga-se de passagem, apesar de pouco explorado e até visto com preconceito por aqui - de Marilynne Robinson conseguiu sair da bolha de tal maneira, que "Gilead" figura entre os melhores livros da década, do século, e quiçá de todos os tempos de todas as listas que existem mundo afora.
Mas o que "Gilead", este livro cristão ímpar tem de tão relevante e precioso, afinal? A história é a mais simples de todas, e que certamente foi o que arrebatou o coração de religiosos das mais diversas denominações, e até mesmo de ateus e agnósticos: um senhor na casa dos setenta anos percebe que a morte está à porta e bate, então decide escrever cartas para seu filho pequeno sobre a história de seus antepassados, para que ele lesse quando adulto.
O pai da criança, John Ames, um pastor na pacata Gilead, ao escrever tais cartas, passa a narrar não apenas suas histórias para o filho, mas a confrontar um passado doloroso e até mesmo obscuro de seu próprio pai e avô.
As duas gerações anteriores, a do pai de John Ames, um pacifista cristão, e também a de seu avô, um abolicionista dos mais radicais, que incitava as pessoas a participarem da Guerra enchem as páginas, em que memórias ora afetivas, ora assustadas, interagem com o hoje pastor a beira da morte e o relembram de quando criança e adolescente, vendo suas gerações agindo de maneira controversa, por que não?, mas ainda assim temente a Deus.
"Gilead" me lembrou muito "Leite Derramado", de Chico Buarque, embora os temas e personagens sejam bem distintos, mas principalmente pelos assuntos que iam e voltavam com frequência na mente falha do protagonista, com novas informações a cada menção, mas abordadas como se ele falasse sobre o assunto pela primeira vez. Acontece que, de maneira geral, o livro de Robinson não me fisgou em nenhum momento. O estado de graça prometido, sinceramente, não vingou.
Não que seja ruim, afinal, longe de ser uma propaganda religiosa, "Gilead" apresenta de maneira franca alguns conceitos, passagens bíblicas e aplicações para a vida do pastor e sua família, e que podem, sim, ser aplicadas a qualquer vida, o que por si só é louvável, pois em momento algum o livro tem o objetivo de evangelizar. No entanto, faltou algo mais para mim, pois as divagações sobre a vida após a morte, assim como menções sobre castigo divino e predestinação, embora presentes com cuidado, não criaram um possível efeito esperado.
Outros temas, estes seculares, foram mais interessantes em um todo, como a história de Jack (que ganhou um livro para chamar de seu em 2020, mas aparentemente o pior da autora, segundo a crítica especializada), a possibilidade do que ele poderia ser na trama, assim como a vida do avô de John e sua participação controversa na Guerra Civil Americana me chamaram mais a atenção que o própria tema central, a da morte e sua presença inevitável.
Foi, sim, agradável, ler um pastor, alguém que, ao menos em tese, tem tanta proximidade de Deus, onde deveria ansiar por ir ao céu, encontrá-Lo, abraçá-Lo e começar sua eternidade, se mostrar tão vulnerável, franco e apaixonado pelas coisas terrenas, ditas pecaminosas, afinal, setenta anos se passaram ali, logo, laços foram criados, assim como costumes, raízes… uma família, óbvio, mas não sei… eu olho para "Gilead" e não sinto o estado de graça prometido pela crítica e confirmada por tantos leitores tão apaixonados e defensores deste livro.
Talvez seja uma história que funcione com a idade, como os bons vinhos, quando temas como morte e vida após a morte se tornem mais latentes e presentes na mente da pessoa que vê, enfim, os dias se esgotando. Ou talvez simplesmente não seja um livro para mim.
Fora da bolha, "Gilead" é o típico livro para fazer muitos leitores que encaram leituras nunca pensadas antes, ou que encaram o tema religioso com olhos preconceituosos, reverem seus conceitos. Afinal, qual a última ficção cristã que você, jovem leitor, leu? Mas ainda assim, sair da zona de conforto talvez não seja o suficiente.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Pulitzer".