Fabio Shiva 22/07/2023
O enigma da constelação familiar em um melancólico drama policial
Confesso que o que primeiro me atraiu para a leitura desse livro foi a capa: uma bela composição em azul cobalto (minha cor favorita) sugerindo o drama da menina afogada, que é o tema central da história. Eu já estava na metade do livro quando me dei conta de que o nome da autora também foi um fator atrativo: na época em que eu estava fazendo uma obsessiva pesquisa sobre romances policiais, com a desculpa de estar escrevendo meu próprio romance policial, “O Sincronicídio” (http://youtu.be/Vr9Ez7fZMVA), o nome de Martha Grimes foi um dos tantos que atiçou minha insaciável curiosidade.
Terminada a leitura, pelo que vi na Internet, imagino que esse “Hotel Paradise” deve ter uma pegada diferente dos outros livros policiais de Martha Grimes. Mas o livro deve ter feito bastante sucesso, a ponto de iniciar uma série com a protagonista Emma Graham, de quatro volumes no total.
Algumas coisas chamam a atenção. É inegável a habilidade da autora em proporcionar uma leitura agradável e envolvente. E é também inegável o sentimento de estranheza que essa história provoca, a ponto de um mistério sobrepujar todos os outros que aparecem na trama: “O que será que levou Martha Grimes a querer escrever essa história?”
Uma menina que se afogou em um lago há 40 anos vira a obsessão da menina Emma, que tem a mesma idade da menina quando morreu: 12 anos. Emma é a narradora da história e filha da dona do decadente Hotel Paradise, que conheceu dias bem melhores na época do tal afogamento. A protagonista investiga esse mistério de décadas passadas quando acontece uma nova tragédia.
Só para dar uma ideia da estranheza que esse livro provoca, nessa curta resenha eu já citei o nome da narradora três vezes. Mas na história, no entanto, esse nome só é revelado na página 392, quase no final. Em que pese a habilidade da autora, a trama toda é cercada por uma inverossimilhança que beira o onírico: parece que a história que está sendo contada não passa de um sonho. Além disso, por conta de uma exasperante característica da protagonista Emma, de nunca falar diretamente o que deseja e de tampouco revelar o que sabe, a trama se estende por no mínimo umas cem páginas a mais. Isso me fez refletir muito sobre o ofício de escritor de ficção, que procura criar um mundo envolvente para o leitor, o que implica criar um cenário e uma atmosfera convincentes, além de personagens vívidos. Não se trata apenas de enumerar ações. Em meu gosto pessoal, prefiro ir direto ao assunto e ir cuidando desses outros elementos enquanto a história vai acontecendo. Cada vez menos aprecio o que considero “encheção de linguiça”, mas há escritores de sucesso que usam e abusam desse recurso, principalmente em histórias de suspense. Um dos exemplos mais famosos é Stephen King, mas ninguém que eu tenha lido enrola tanto ao contar uma história quanto Dean Koontz, ironicamente intitulado “mestre da ameaça” (ameaça contar, mas demooora pra cumprir a ameaça...). Pois bem, penso que Martha Grimes faz parte desse time. Isso não é demérito, apenas uma questão de gosto.
Outro detalhe interessante sobre “Hotel Paradise” é que é difícil situar a história no tempo. O livro foi publicado em 1996, mas a impressão que a história dá é a de que acontece bem antes, em algum ponto perdido no tempo. Pelo que me lembro não há qualquer referência à tevê ou mesmo ao rádio – o jornal local parece ser a única fonte de notícias. Uma referência temporal é a série de livros da Nancy Drew, alter ego da protagonista Emma, e que começou a ser publicada em 1930.
É difícil elaborar sobre o estranhamento que esse livro causa sem cometer spoiler, por isso vou me limitar à descoberta que considero o maior ganho de ter lido “Hotel Paradise”. Senti algo parecido ao ler um livro totalmente diferente: “Os Servos da Morte”, de Adonias Filho. Ao reler a resenha que escrevi na época (https://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com/2019/12/os-servos-da-morte-adonias-filho.html), deparei-me com essa frase, que poderia muito bem estar se referindo a “Hotel Paradise”:
“Nada parece acontecer, em meio a um intenso clima de tragédia iminente.”
O ganho foi perceber o ponto de conexão entre obras tão díspares: a trama calcada em traumas profundos em uma determinada constelação familiar. É muito ódio e crimes de morte no seio da família. São dores tão profundas que sentimos o ímpeto de respeitar mesmo o que não compreendemos. Talvez daí venha esse apelo inexprimível de “Hotel Paradise”.
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