Flávia Menezes 18/04/2023
SOMOS TODOS VÍTIMAS GERADOS E NASCIDOS DE OUTRAS VÍTIMAS!
?II Samuel 9: 4 Estava, pois, o rei com o rosto coberto; e o rei gritava a alta voz: Meu filho Absalão, Absalão, meu filho, meu filho?.
?Absalão, Absalão!? não é apenas mais um romance escrito por aquele que é considerado um dos maiores romancistas do século XX, mas é mais uma obra-prima que nos revela a excelência artística da escrita primorosa e única de um homem chamado William Cuthbert Faulkner.
Publicado em 1936, o livro, juntamente com ?O Som e a Fúria?, ajudou Faulkner a conquistar o Prêmio Nobel da Literatura em 1949, e ainda foi eleito pelo ?The Guardian? em 2002 como um dos 100 melhores livros já escritos (claro que ?O Som e a Fúria? também está nesta lista!). Já pela revista literária ?Oxford American?, ele foi considerado como o melhor romance gótico sulista de todos os tempos. O que ele é, sem sombra alguma de dúvida!
Em um emaranhado de vozes que se unem a temporalidades tão diversas, e que passeiam entre passado e presente sem nenhuma regra, nessa dança em que cada instante um novo narrador fala e pensa de uma só vez, é que somos literalmente jogados no drama pessoal de Thomas Sutpen, esse megalômano com sua luxuosa mansão e sua infortunada família cheia de segredos e mistérios, onde ao final, veremos que aqui ninguém é algoz, e nem vítima.
Neste inquietante microclima moral criado por Faulkner, nossos olhos vão acompanhando esses discursos que nos falam de recordações, imaginações de relatos, fatos, atos, que se mesclam e vão desaparecendo na potência da linguagem escrita, que é a própria magnitude deste autor que escreve muito mais comprometido com o processo da escrita, do que com o seu produto final em si. De fato, em alguns momentos, esses nós textuais que não podem ser desfeitos nem pela lógica e nem pelas velhas leis de causa e efeito, são um verdadeiro convite para nos permitirmos nos perder, apenas para que mais a frente alcancemos a possibilidade da solidez do relato.
Essa é a magia e a beleza da escrita faulkneriana: nos submergir nesse jogo de palavras que é fruto da vaidade dos seus personagens, que se aproximam sem timidez alguma para nos contar suas histórias como bem querem. É um iluminar e apagar da história, onde ora nos são apresentados dados visíveis para, no instante seguinte, nos revelar o que estava apenas subentendido. E assim, eles (os personagens-narradores) vão nos colocando no caminho para a compreensão da trama, ao mesmo tempo em que brincam a todo instante de nos despistar. E aí é que eles mostram toda a sua força em nos fazer submeter quem somos e tudo o que acreditamos inteiramente às suas vontades e ao seu tempo, se assim quisermos chegar a algum lugar que nos ajude a compreender seu final. Se é que existe algum final!
Ler Faulkner é compreender com exatidão o conceito de angústia que foi proposto pelo filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês Søren A. Kierkegaard. Se você já leu esse pequenino livro do pai do existencialismo, vai se lembrar bem que quanto mais você buscou entender o conceito de angústia proposto ali por ele, mais perdido você deve ter se sentido. Até porque quando ele fala de um ?conceito?, quanto mais lemos, mais isso nos parece uma pegadinha de muito mal gosto.
De fato, a filosofia existencial não traz conceitos como estamos acostumados. A modernidade é muito 8 ou 80, com seu empirismo e positivismo, e esse é um caminho muito distante do que o existencialismo tem a nos oferecer.
Recentemente, quando tentava explicar sobre esse conceito de angústia do Kierkegaard para um primo meu que está cursando a faculdade de Psicologia, uma coisa que eu disse a ele é que o existencialismo e a fenomenologia não são abordagens que devemos compreender através do raciocínio lógico, mas sim, nos permitir caminhar para a uma apreensão de significado através da experiência sensorial, que nos faz mergulhar dentro de nós mesmos e provarmos na carne tudo aquilo que ela tem para nos ensinar.
Digo isso porque é exatamente assim que eu vejo a escrita do Faulkner: não como uma experiência literária para ser compreendida, mas para ser apreendida através do cinestésico que ele vai estimulando em nós a cada página.
Aliás, trouxe a questão do conceito de angústia porque essa é uma palavra que descreve bem cada uma das histórias desse gênio dos romances, já que em suas obras, somos lançados para dentro dos seus personagens, sentindo e experimentando cada um dos tormentos que uma alma humana é capaz de ser submetida. E por isso mesmo é que eu tenho certeza de que se Kierkegaard tivesse podido conhecer Faulkner, certamente ele usaria suas obras de modelo para nos dar como exemplo sobre o seu conceito de angústia!
Inspirada no episódio bíblico de Samuel, que conta como Absalão, filho de Davi, mata seu irmão Ammom por ter se apaixonado pela sua irmã Tamara, em ?Absalão, Absalão!? Faulkner afirma que a maldição sob a qual o Sul americano trabalhava é a escravidão. E nesse contexto, a maldição de Sutpen é a sua forte crença de que ele não precisa ser parte de uma família humana. E unidas, ambas as maldições provocam a ruína de Sutpen.
Mas, nos romances de Faulkner, não existem mocinhos e nem vilões. Afinal, assim como na realidade, não somos puramente algozes e nem tão somente vítimas. E cada um de nós está fadado tanto a infringir a dor do outro, quanto a sofrê-la. Especialmente quando o assunto em questão é a família.
Somos vítimas gerados e nascidos de outras vítimas. Assim é o jogo da vida. E assim é na família de Thomas Sutpen, quando seus narradores nos contam em detalhes cada um dos segredos familiares que Sutpen pensava estar enterrados. Afinal, como bem dizia Bert Hellinger, esses são segredos que seus portadores sempre acreditaram tão fielmente que poderiam deixar ali, velados e enterrados dentro de suas almas, mas a verdade é que, através das novas gerações, esses segredos ressurgem para nos assombrar.
Se tem algo que acho bonito, por ter tanta força e vida, são as falhas dos nossos pais e dos pais dos nossos pais. Já pensou como isso é poderoso? Pensar que todos esses homens e mulheres que nos precederam acertaram, mas também tiveram que conviver com a culpa que a sua humanidade lhes impôs de falhar, e falhar muito? E aí, quando olhamos para esses segredos (sem querer romantizar as situações), percebemos o quanto de beleza existe ali, e não porque são bons, mas porque são verdadeiros! E se olhados com respeito, vamos perceber que cada um deles revela com exatidão até onde aqueles que nos precederam conseguiram ir. Será que somos mesmo mais fortes do que eles foram? Será que daríamos mesmo conta de tudo aquilo que eles não deram? Será mesmo?
Os segredos de Thomas Sutpen me emocionaram muito mesmo, e foi lindo ver como Faulkner conseguiu me mostrar a humanidade desse que a todo instante era tratado como ?o demônio?. Através de sua escrita, Faulkner me permitiu penetrar em sua alma, e eu me comovi (e sofri!) com muita coisa que vi ali.
Nesse mundo em que vivemos somos bem rápidos para julgar, mas se pararmos por um minuto, e formos honestos com a gente mesmo, vamos nos deparar com falhas e pecados, segredos e mentiras que nós contamos para os outros, e para nós mesmos.
E como no caso de Sutpen, alguns segredos são mantidos em nossas almas não porque temos vergonha deles. Nem tudo o que escondemos, o fazemos por vergonha. Algumas vezes o fazemos por sentir alguma culpa, ou porque vivemos algo que nos era proibido, mas nem sempre escondemos algo porque temos vergonha, ou porque não foi algo bom.
Ao contrário! Algumas vezes existem momentos que são tão perfeitos, e onde nos sentimos tão completos e felizes, que não queremos dividi-los com mais ninguém, a não ser com aquele que esteve presente e foi cúmplice da nossa felicidade (Até porque, sejamos sinceros, mas tem alguma graça em se ser feliz sozinho? Eu particularmente penso que não!).
E eu penso que foi exatamente assim que os segredos de Sutpen se fizeram: de em momento vivido que foi tão perfeito (mas fortemente recriminado e proibido por sua consciência!), que não pode ser revelado ao mundo, nem muito menos aos seus descendentes. Acho que agora acabei fazendo o papel de advogado do diabo, mas a verdade é que quem não tem pecado, que atire então a primeira pedra. Sendo assim, quem sou para julgar Thomas Sutpen?
Ler ?Absalão, Absalão!? é uma experiência única, sensorial e tocante, que, para mim, foi muito maior do que eu sequer podia imaginar, e cujo final conseguiu me levar às lágrimas por tamanha beleza de uma narrativa poética, intensa e emotiva! Quanta perfeição em uma única história!
Não há como um único livro desse homem, desse gênio chamado William Faulkner não valer menos do que 5 estrelas. Na verdade, eu lhe daria um firmamento inteiro, porque não há como não me render à sua magnitude. De fato, eu me declaro aqui, para sempre, submissa a ele e a todas as suas magníficas obras!??