Suênya lopes 26/03/2023
O cotidiano da miséria, não a miséria do cotidiano.
É interessante porque é isso mesmo. Essa história descreve muitos comportamentos comuns presentes na miséria. Logo na contracapa lemos que o mangá é uma ode ao fracasso. E o é porque graças ao seu orgulho e arrogância, o protagonista se dirige com entusiasmo ao fracasso, arrastando sua família consigo.
Ele se põe a margem. É evidente que a própria sociedade tem sua parcela de culpa nisso, mas a pretensa superioridade moral dele também. É um homem que passa a considerar sua própria arte inútil, porque os outros não veem a profundidade que ele enxerga. Assim como não veem a importância de nada que ele considera importante, pois em algum momento ?pararam com as coisas inúteis?.
Como vi certas pessoas dizerem, essa é uma história 8 ou 80. Ou você gosta ou não gosta nada. E à princípio você pode sequer entender qual é a graça de um homem simples vendendo pedras. Porém, entremeadas em meio as camadas da narrativa, há certos pontos que merecem observação, sendo o principal deles a questão sobre o propósito da arte.
Aparentemente, mesmo uma boa arte pode conter alguma dose de relativismo. Talvez não para mim ou para você, mas a um outro alguém. É por isso que no ambiente artístico há sempre a discussão do que é arte. Existe, por exemplo, enorme dúvida quanto à mangás serem arte ou não, como é bem mostrado nesta história em que o próprio personagem rejeita suas obras. Isso ocorre pois em parte tratamos arte como um produto a ser consumido.
Durante as páginas, Tsuge vai nos mostrar que não é bem assim. Em sua história, elementos naturais, paisagens virgens e salas são sempre desenhadas de forma mais aconchegante e bela, enquanto os personagens levam características mais grosseiras. De uma maneira ou de outra, isso nos diz que há uma arte que o toque humano não alcança e que não pode ser apreciada apenas como mercado. Uma arte etérea, que está além dos nossos sentidos.
É proposital essa nuance nas linhas dos desenhos, que valorizam mais a natureza que os homens, porque para os japoneses há um grande valor e vida na natureza intocada, merecedora de cultos. Isso chama também a atenção de Marcello Quintanilha, que prefaciou a obra. Para ele, o que lhe voltou os olhos ao mangá de Tsuge, que oscila o ?registro entre realismo e caricatura?, foi justamente a ausência de senso de proporção.
Essa falta de senso de proporção serve à própria expressão do artista. Como observa Quintanilha, há uma interpretação de padrões morais evidentes nos traços de Tsuge. As hierarquias morais dos indivíduos dentro da miséria são estabelecidas conforme seus desenhos: uns são mais trabalhados, outros mais caricatos, e por aí vai.
Para além disso, há o fato de este ser um mangá considerado o precursor do tipo ?Watakusha?, conhecidos como quadrinhos do ?eu?, uma espécie de autobiografia, embora há quem diga que associar detalhes de uma vida pessoal a uma história não quer dizer que necessariamente esteja o autor parafraseando sua vida.