Klotz 04/12/2018
O leopardo - Tomasi de Lampedusa - Círculo do livro 218
Quando nos recomendam a leitura de um livro listado entre os 100 melhores de todos os tempos, somos tentados a largar tudo para começar logo, apesar da prateleira cheia de livros pinçados, adquiridos e não lidos.
O leopardo, que no original é Il Gattopardo, foi indicado e aprovado no Clube de Leitura que em seis anos de convívio me levou a ler inúmeros clássicos que eu jamais leria ¬– e aplaudiria – se não fosse a indicação abalizada.
Por estar esgotado, comprei o meu exemplar num sebo virtual. A edição chegou com letras miúdas, sem entrelinhas, com a capa prejudicada, as folhas amareladas, cheirinho de mofo e alguns rabiscos típicos de criança não alfabetizada. Foi um começo desencorajador à leitura e a afeição do objeto.
Na apresentação tomei conhecimento que o autor, príncipe de origens nobres, de cultura vastíssima pensou a história do seu avô durante 25 anos e a escreveu entre 1955 e 1956. Algo parecido como se o herdeiro Orleans e Bragança contasse a história da mudança de regime vivenciada pelo antepassado.
O romance foi rejeitado pela maior editora italiana da época por ter sido desenvolvido nos moldes da escrita tradicional – romântico, descritivo e reflexivo – e não de acordo com a vanguarda de 1950. Lampedusa faleceu antes da publicação e obviamente antes do reconhecimento.
A narrativa se inicia em maio de 1860 com um frase em latim “Nunc et in hora mortis nostrae. Amen.” – agora e na hora da nossa morte. Amém. – é parte de uma oração, mas para mim é verso da música Ave Maria. A escolha simbólica é perfeita por ser a tradicionalmente tocada nas igrejas às seis horas da tarde, no crepúsculo, encerramento do dia como, no caso, é o crepúsculo de um reinado.
O crepúsculo de um reinado é justamente o tema da história. Trata do final do reinado de Fabrício Corbera, príncipe de Salina, apontando o fim da nobreza na unificação de todos os reinos, ducados, principados num único reinado.
A decadência da família Salina é apontada já no primeiro capítulo quando fala de Dom Corbera: “Ele era, numa família que, pelos séculos afora, não aprendera sequer a fazer a soma das despesas e a subtração das dívidas, o primeiro (e último) a possuir uma forte e real inclinação para as matemáticas.” A nobreza de Dom Corbera está em decadência, sente-se isolado e impotente na manutenção do poder, mas pensador que é, encontra uma solução para uma queda menos abrupta.
Mais do que a decadência de Salina, o autor descreve um parente próximo “à saída da propriedade dos Salina, avistava-se à esquerda, a villa semiarruinada dos Falconieri, e que pertencia a Tancredi, seu sobrinho e pupilo. Um pai esbanjador, marido da irmã do príncipe, dissipara todo o patrimônio para morrer em seguida. Fora uma daquelas ruínas totais em que se acaba por mandar fundir a prata dos galões dos librés. (libré é o fardamento formalíssimo dos criados servidores como metres, mordomos, garçons e guardas).
A mulher e filhos do príncipe são alienados para os acontecimentos em geral. Incapazes de perceber, de se mobilizar, mudar rotina ou tomar atitude. Ocupam-se com rezas e mais rezas.
O príncipe enfadado resolve ir à cidade para se desanuviar. E leva o padre consigo como álibi.
Quando entra em Palermo pela porta Maqueda, procurei imagens do portal na Internet. Logo encontrei fotos datadas de 02 de junho de 1860 com barricadas e canhões mostrando o clima de revolução eminente. Ao contrário do ótimo filme de Luchino Visconti, o livro não é explícito com cenas de guerra. A imagem revolucionária permitiu-me sentir o clima que a família do príncipe fazia de conta inexistir.
Depois da aventura na cidade o padre queria que o príncipe se confessasse. Dom Fabrício argumentou que era desnecessário e segredou que a esposa era por demais pudica. Tanto que “Tive sete filhos dela, sete, e nunca lhe vi o umbigo.”
Os personagens aos poucos ganham definições e cores. O sobrinho era pobre, mas galante e esperto. Logo percebeu que precisava se juntar ao time dos revolucionários. E saiu-se com uma frase marcante: “Se quisermos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.”.
A frase emblemática extraída de obra de Maquiavel, aponta para a erudição do autor e sugere que a forma de governar muda pouco, trocam-se os mandantes. “porque tudo fica na mesma, apenas com uma insensível troca de classes.”.
Tomasi tem um humor inteligente onde às vezes apresenta sofismas como: “Fiéis aos encontros, os cometas haviam-se habituado a apresentar-se pontualmente perante os que os que os observavam.” Ou ao olhar as estrelas “Lá estava Vênus, envolta no seu turbante de vapores outonais. Essa era sempre fiel, esperava por ele nas suas saídas matutinas, em Donnafugata, antes da caçadas, agora depois do baile.”.
Outro personagem destacado é Dom Calogero Sedàra. Nascido camponês, fez fortuna e vai pela primeira vez ao palácio do príncipe. “Agora sensível como estava aos presságios e símbolos, via uma autêntica revolução naquela gravata branca e nas duas abas que subiam as escadas de sua casa. Não só ele, o príncipe, não era já o maior proprietário de Donnafugata, como era obrigado a receber em traje de tarde um convidado que se apresentava em traje de cerimônia.” – “O fraque de Dom Calogero era uma catástrofe.”. Mas a sua filha, Angélica, é exuberante.
Os dois, Angélica e Tancredi, por interesse do príncipe e do novo rico, acabam por fazer o casal romântico unindo nobreza e fortuna para gestar o poder emergente, apesar de várias contestações como:
“— Isso é uma sujeira, Excelência! Um sobrinho vosso não deveria casar com a filha daqueles que são vossos piores inimigos e que sempre vos têm puxado pelas pernas. Que procurasse seduzi-la, como eu julgava, era um ato de conquista: mas assim é uma rendição sem condições. É o fim dos Falconeri e também dos Salina.”
O leopardo, título do livro, ora com bigodes compridos, ora com garras afiadas ou simplesmente cansado, é o protagonista no brasão da família.
Eu ainda gostaria de destacar a presença de Bendicó, o cão da família que com um arco participa do início feliz da história em 1860 e faz o desfecho, empalhado, em 1910.
Apesar de ser um romance arrastado, não deixa uma única ponta sem fechamento. É sensacional.
Um livro, para ser considerado clássico, atravessa gerações sem perder seu valor. Este tem prosa muito bem desenvolvida, mistura ficção e realidade e, principalmente, nos leva à reflexão com o tema atemporal da mudança.
Você não precisa entrar num clube de leitura e esperar a recomendação do livro. Comece já.
Se eu não consegui convencê-lo da leitura, então ao menos, veja o filme do mesmo nome. Os dois, livro e filme se complementam e impulsionam a magnitude da história. É estrelado por Burt Lancaster, Claudia Cardinale e Alain Delon e ganhou a Palma de Ouro em 1963.