Lucas 04/04/2021
Tergiversação e inocuidade: As bases narrativas de um livro discutível
Um pai leva o filho de 11 anos à porta de um colégio interno, chamada Ateneu, para que ele lá inicie sua vida estudantil/acadêmica. "Vais encontrar o mundo; coragem para a luta" são as palavras escolhidas pelo pai ao seu rebento antes de adentrarem no colégio. Esse pano de fundo corresponde às primeiras linhas do livro O Ateneu, do escritor fluminense Raul de Pompéia (1863-1895), lançado em 1888.
A ideia de um menino (abastado, diga-se, já que o Ateneu era referência na formação de adultos com origens econômicas privilegiadas) rompendo com a criancice e entrando num mundo de adolescência, representado pela convivência com outros jovens no internato, é, sem dúvida, uma premissa interessante para uma ótima narrativa. Sérgio, o tal garoto, narra, aparentemente já adulto, sua passagem pelo internato e todo o emaranhado de relações rasas que ele acaba por lá desenvolvendo.
Personagem mais importante até mesmo que o Ateneu é o seu diretor: Aristarco Argolo de Ramos, homem de moral aparentemente inexpugnável, que, por meio de uma conduta acadêmica destacada (e muito marketing, diga-se), garantia que os garotos que em seu internato entravam de lá saiam adultos feitos, prontos para atingir as mais altas esferas do já então quase falecido Império brasileiro. Se não chega a ser um amigo de Sérgio, ele é, indubitavelmente, o mais comentado personagem nas memórias estudantis do narrador. É ele, também, que serve de "laboratório" para as finas e bem discretas ironias que Pompéia, um republicano assumido, descarrega em suas linhas (ironias estas que não atingem necessariamente o Império, mas sim a discutível conduta ostensivamente capitalista do diretor, dentre outras nuances).
Sérgio, inicialmente um aluno mediano, vai desenvolvendo ao longo dos doze capítulos e das 205 páginas da boa edição da Editora Nova Cultural (de 1981) amizades e relações com vários tipos: Sanches, o melhor aluno da classe; Franco, o problemático e eterno infrator; Bento Alves, gaúcho, um pouco mais velho e cuidador de uma das bibliotecas do Ateneu; Rebelo, aluno inteligente e esforçado com um problema crônico nas vistas; e o Barbalho, que hoje seria chamado de "bully", garoto que perseguia o protagonista com agressões morais e físicas.
Tal preâmbulo já é o suficiente para que se compreenda de antemão que o ambiente no Ateneu era de uma disciplina rígida, mas capaz de se flexibilizar de acordo com os alunos envolvidos. Exemplificando, garotos jovens, num ambiente assim, tendem a desenvolver a sexualidade de formas distintas. Não apenas essa questão da sexualidade, que eu, particularmente, acreditei que seria mais explorada na narrativa, mas grande parte das parcas contendas que ocorrem entre direção e alunos dá-se de forma mais rasa e sem grandes discussões sociais que poderiam ser aplicadas ao exterior em relação aos muros do colégio. Sobra, de todo modo, uma passagem simbólica e rápida desse tipo de situação apenas no último quarto da obra.
Mas se fosse apenas este viés que tivesse ficado inexplorado por Pompéia, O Ateneu ainda teria muito potencial, a lembrar da cena inicial, reproduzida no início dessa resenha. Contudo, o livro apresenta uma série de problemas não de ordem narrativa (o desfecho, por exemplo, me surpreendeu e fez eu olhar para o livro com menos frustração), mas relacionadas a este aspecto, de não explorar devidamente o contexto narrativo que é apresentado e de ocupar a escrita com uma imensidade de subterfúgios.
Nas minhas resenhas por aqui, procuro sempre manter um tom impessoal, mas agora é impossível seguir nessa linha. A crítica, humilde que eu faço a O Ateneu, é de estilo: o narrador, adepto do realismo, escreve de uma forma excessivamente rebuscada. A leitura não anda, tergiversa em filosofias obscuras. E o pior, algumas dessas filosofias também possuem potencial, mas a forma com que elas são desenvolvidas tiram o interesse do leitor. E é curioso porque não é a linguagem em si, mas a inoperância das frases para a narrativa "caminhar", a quase inexistência de diálogos, entre outros pontos que emperram a leitura de uma forma que eu, pelo menos, nunca tinha presenciado. Pela primeira vez em minha vida de leitor pensei seriamente em abandonar a leitura de um livro depois de começá-lo. Só o finalizei por respeito a memória do autor (que suicidou-se dramaticamente aos 32 anos) e por uma característica pessoal minha: a teimosia. E, deixando claro, divagar e filosofar está longe de ser algo que desabone qualquer obra. A maioria dos meus livros prediletos, por exemplo, possui em maior ou menor grau cargas de divagação e narrativas amarradas. Mas é preciso que estes momentos, conjuntamente, sirvam como sustentáculo para que o autor "pise no acelerador" nos momentos certos e faça a narrativa fluir, mesmo que dali a pouco chegue outro momento de filosofias e afins.
Valeu a pena seguir a leitura? Valeu sim. Como já mencionado, o desfecho tocou-me mais do que o imaginado. Mas eu sempre olharei para este livro em minha estante e ficarei com a lembrança da primeira cena que ele narra e de que a obra-prima de Raul Pompéia poderia ter entregado muito mais. A pedra fundamental do romance, quando desnudada, é linda, promissora; mas ao redor dela se construiu um edifício comum, sem cor e sem sal.
O Ateneu, que passou a ser exigido para vários vestibulares nos últimos anos, é um livro problemático, que não engrena, mas que, se o leitor for persistente, pode trazer alguns pontuais momentos marcantes durante a sua segunda metade. Se foi um livro que não funcionou comigo ou se ele divaga inutilmente em demasia mesmo, é algo que a humanidade jamais saberá. Qualquer leitura tem a capacidade de tocar, todos os leitores sabem disso. A recomendação que deixo é de lê-lo na ausência de outras leituras mais exigentes ou em contextos pessoais menos agitados. As ressalvas nessa atmosfera serão certamente menos perceptíveis e farão com que a obra seja mais bem digerida e avaliada.