Paulo 02/12/2021
Neste segundo volume, Hiroaki Samura continua a mostrar por que ele é um fenômeno não só na arte de contar histórias como em representar personagens. Narrativamente, ele continua a dar um chute na porta e questionar uma série de dogmas relacionados aos samurais. Conceitos de honra, vingança e habilidade com a espada são colocados por ele em xeque e nos pomos a refletir se ele realmente não tem razão. Humanizando os personagens, ele embaça a linha que separa o bem e o mal. Já na arte, ele continua experimentando técnicas de desenho e começamos a ver o autor chegando a um consenso sobre o que encaixa melhor com o mangá. Tem algumas cenas memoráveis neste segundo volume.
Somos deixados no final do primeiro volume com Makie se encontrando com Anotsu e finalmente chegando a termos consigo mesma. É chegada a hora de retomar o confronto com Manji e mostrar sua real habilidade com a espada. Mas, a personagem ainda continua tendo muitas dúvidas acerca de matar pessoas. O que é certo ou errado? Um combate explosivo que levará Manji aos seus limites e mesmo com um corpo imortal, ele pode não ser páreo para a genialidade da espadachim. Já Rin tem um encontro inesperado e revelador que coloca em dúvida se sua vingança é algo realmente justo. Principalmente quando ela percebe que ela mesma não segue os princípios do Munten'ichi-ryu. Quando ela se dá conta da verdade nas palavras de seu acusador, seu coração se parte e Rin não sabe mais o que fazer. Para retomar sua jornada, ela precisará descobrir o que a motiva a enfrentar os membros poderosos do Ittou-ryu. Sem falar na chegada de um estranho vendedor de máscaras que esconde uma ferocidade nunca antes vista pelos personagens.
Uma bela edição, diga-se de passagem. Aqui Samura começa a aprimorar mais o seu traço e as experimentações vão ficando mais e mais escassas à medida em que ele chega a uma forma final para aquilo que ele deseja. Não à toa o próprio design da Rin se torna belíssimo da metade desse volume em diante. Mesmo o Manji também toma uma forma final. Nesse volume, ele troca o hachurado pelo sombreamento e pelo uso do lápis. Dava para perceber como as hachuras e as linhas faziam parte de um design inicial, mas Samura parece ter preferido dar mais corpo para o traçado dos personagens. As linhas de expressão, a composição deles em uma cena. Um ótimo exemplo dessa mudança está no duelo entre Manji e Makie em umas casas meio velhas. Os personagens parecem fazer sentido dentro daquele quadro. Seus traços são mais sólidos, com um design corporal elegante e preciso. Ainda que os momentos de ação na primeira metade ainda sejam um pouco confusos, Samura começa a dar mais coerência às cenas. Os movimentos da Makie são bastante fluidos, como uma borboleta traçando um voo com suas asas ou Anotsu com suas linhas poderosas, escondendo uma fragilidade ilusória, porém desconcertante. Já nos capítulos em que o Araya aparece percebemos essas mudanças em pleno efeito.
Tem um momento do mangá que é belíssimo. É uma página toda sem balões que apresentam o golpe definitivo entre Makie e Manji. A transição é toda feita de momento para momento e a cena parece ter saído do cinema. São pequenos quadros mostrando várias tomadas, com um close no Manji, outro na Makie, outro em uma gota de orvalho caindo na água, outro com a poeira sendo levada pelo vento, outro de uma árvore ao fundo com folhas caindo. Talvez seja o melhor exemplo a ser inserido em livros de desenho criativo mostrando o que é uma transição de quadros de momento para momento. Quando visualizei aquela página em específico, me lembro que chegou a arrepiar e fiquei preso naquela cena por alguns minutos. Mesmo ela sendo um momento que se passa em milésimos de segundo. Quando o Samura quer criar algo chocante, o resultado é algo nesse nível. Ele brinca com outras situações como essa ao longo desse volume, mas nada com esse impacto (pelo menos não aqui).
Confesso que tenho um fraco pela Makie. É uma das personagens que mais gosto em Blade justamente pela sua contradição interna. Aliás, preciso aplaudir o tradutor Thiago Nojiri pela escolha do título desse trecho. Os capítulos com o confronto entre Manji e Makie tem como título Dreamsong que qualquer um traduziria como Canção dos Sonhos. Ele escolheu traduzir como Dedilhando Sonhos, dando um ar poético incrível para os capítulos. E algo que combina demais com a personagem, uma drifter que tenta encantar as pessoas com o seu shamisen. Talvez essa seja a melhor definição para a Makie: uma drifter. Alguém que vaga sem rumo e sem destino, tentando entender qual é o seu lugar no mundo. Mesmo tendo uma habilidade sem igual com a espada, ela não consegue matar. Minto... até consegue, mas quando ela percebe o que está fazendo, a personagem trava. No seu confronto com Manji, Makie só consegue liberar o seu real potencial em respeito à habilidade de nosso protagonista. Makie coloca em questão esse afã dos empunhadores de espada em matar seus adversários. O que isso prova? Qual é o seu caminho da espada? É a primeira vez em Blade (terão outras) que vemos uma antagonista que consegue vencer o duelo de palavras.
Só que esse volume não fica por aí já que ficamos sabendo um pouco mais da filosofia do Ittou-ryu. E Samura mais uma vez mostra por que ele é um rebelde. Gostamos de ver os duelos entre os vários estilos de técnicas de espada. Mas, no Japão, os dojos seguem normas estritas para que um estilo fosse preservado ao longo dos tempos. Por essa razão, o Muten'ichi-ryu não aprova o emprego de armas estrangeiras em seu estilo. Somente a katana, a arma nacional do Japão. Um estilo tão dogmático assim não permite o uso livre das técnicas de espada. É com isso que Anotsu tem lutado: na sua visão não devem haver barreiras para os praticantes de espada. Todos devem ser livres para evoluir em suas técnicas como achar melhor. Anotsu cita dois exemplos de pessoas que mudaram o rumo das artes marciais desrespeitando regras: Ieyasu Oda com armas de fogo e Miyamoto Musashi ao empregar duas espadas ao invés de só uma. Será que sua forma de pensar é tão errada assim? Claro que vamos comentar sempre acerca dos meios que Anotsu usa para chegar ao seu ponto de destino, mas sua filosofia não é tão estranha assim.
Juntando os dois temas discutidos nos parágrafos anteriores, o dogmatismo nas artes marciais e a necessidade ou não de matar, ambos se chocam de forma direta com os objetivos da Rin. Samura faz isso de uma maneira bastante sutil até que isso explode como uma bomba. Primeiro, é preciso pensar que mesmo sendo a sucessora do estilo Muten'ichi-ryu, Rin usa adagas como sua técnica principal. Isso foge completamente dos ensinos de seu pai, ou seja, ela sequer segue os ensinamentos de seu dojo. Como ela pode criticar alguém que se coloca contra tais ensinamentos (e é a motivação-base) se nem ela mesma assim o faz? Ou seja, a acusação de hipócrita é jogada na cara. Outra situação que é exposta a ela é quantas pessoas precisarão morrer para que a vingança dela seja levada a cabo. Isso porque as mortes ultrapassaram apenas perseguir os membros do Ittou-ryu. Outras pessoas acabaram sendo arrastadas para esse ciclo de vingança. Para uma pessoa inocente como Rin, isso é um choque. Principalmente quando os números se tornam reais. Até este volume foram onze pessoas mortas, sendo três os envolvidos no ataque ao dojo. Portanto, a fala da Makie sendo contrária ao assassinato bate também na nossa personagem. Quando ambos os discursos convergem, Rin fica perdida. Ao fornecer essa tinta de humanidade aos personagens, Samura torna as linhas entre bem e mal muito turvas. Fica complicado saber quem tem razão no final. E provavelmente nunca saberemos ao certo.
Outro ponto marcante nesse segundo volume e que dá corpo ao que falamos até aqui é o que motiva alguém a brandir sua espada. Então, Rin não deseja se vingar; então o que a leva a levantar suas armas contra os membros da Ittou-ryu. O que achei um pouco covarde foi questionar se a vida dos pais da Rin valia tão pouco. Nesse ponto, discordo da narrativa e acho uma forma preguiçosa de dar a volta e fazer a personagem seguir adiante na história. Seria muito simples supor que a Rin chegaria a termos consigo mesma e "perdoado" de certa forma aqueles que lhe fizeram mal. A história acabaria aqui. Até o momento não ficaram claras suas motivações. Por exemplo, o Manji é uma pessoa muito mais simples de entender. Ele deseja se redimir e enxerga na proteção da Rin um caminho para isso. O que ela quiser fazer, ele vai com ela. A vingança da Rin é algo que somente ela sabe quando parar ou quando continuar. Claro que Manji sabe quando a personagem está sendo sincera consigo mesma ou quando ela arruma justificativas baseadas no que outros lhe falaram. E eu nem vou entrar no caso do Araya que é uma outra circunstância e algo que deixarei para a próxima resenha.
Uma segunda edição muito boa com a arte do Samura tomando enormes passos para uma solidez. Ele acrescenta a técnica de sombreamento ao que ele já fazia com as hachuras e produz uma arte mais polida. Alguns experimentos que ele faz ao longo do volume são lindos. A narrativa ganha bem mais profundidade ao fornecer humanidade aos personagens. Já não dá mais para colocá-los em uma dicotomia bem e mal, já que todos tem suas motivações claras, quer concordemos ou não com elas. Ficaram algumas perguntas a serem respondidas, sendo a principal delas se Rin vai encontrar os motivos que a levaram a seguir adiante.
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