de Paula 28/01/2022
Crianças não nascem precondeituosas
Pense no pior tipo de xingamento que alguém poderia usar contra você e que te feriria mais do que uma agressão física. Agora pense em um dos maiores livros da literatura do seu país ter esse tipo de expressão de baixo calão de puro desrespeito ter a mesma palavra ou frase repetidas mais de 200 vezes. Tenho certeza que seria um livro que no mínimo causaria incômodo, e você precisaria de muito estômago para finalizá-lo, afinal, ser ofendido uma vez não é fácil, imagina o tempo todo, por mais bela que seja a narrativa, os gatilhos emocionais dispararão para todos os lados. Pensando assim, é compreensível toda a luta do povo negro estadunidense contra o livro de Mark Twain, onde a ofensa "niger" se repete mais de 200 vezes. Não dá para negar os sentimentos e o efeito que nossas palavras vão causar no outro, o que podemos fazer é compreender e respeitar e é isso o que eu penso das Aventuras de Huckleberry Finn. As pessoas pretas que se sentem mal ao ler a obra por conta da escravidão, segregação e racismo estrutural que enfrentam até hoje a perpetuação de pensamentos discriminatórios e todos os tipos de violência que o povo sofre e, por mais que a obra tenha sido escrita com o intuito antirracista (pelo menos, é o que eu interpretei), as pessoas usam as palavras daquele povo simples de um período escravagista, onde Deus "aprovava" a escravidão do povo negro e não havia outra saída a não ser escravizar e perpetuar isso, afinal era o que sempre foi feito, pessoas más pegam esses discursos de ilustração de uma era e de um povo e perpetua seus próprios preconceitos. Não condeno as pessoas que se sentem desconfortáveis com a leitura, porém, acho que as pessoas devem dar uma oportunidade para terem a própria opinião, ao invés de se deixarem guiar por discursos de outras pessoas que podem não ter a mesma visão e interpretação da narrativa, assim como os gatilhos emocionais de um podem não ser os mesmos para outros do mesmo grupo social.
Dito isso, outro ponto importante a ser ressaltado sobre a temática étnica é como o autor comprova com o personagem Huck que o preconceito não nasce com o ser humano, mas ele é ensinado. O menino Finn não tinha família, até encontrar dinheiro no livro anterior, As aventuras de Tom Sawyer, quando foi adotado por uma viúva que tentou ensiná-lo a ser correto, isto é, respeitar os preceitos bíblicos e ser racista, de modo geral. No entanto, ele aprendeu a ler, teve outra visão de mundo e uma oportunidade de ser melhor. Mesmo assim, teve muitos problemas de consciência e após pensar muito, decidiu que preferia ir ao inferno do que deixar um escravo viver nesta condição quando ele era uma das pessoas mais gentis, amigas e honradas do que os brancos que ele conheceu. Tom quando retorna a narrativa também mostra seu lado revolucionário e abolicionista, do jeitinho livro de cavalaria e aventura dele, só reforça a tese de que não nascemos preconceituosos, nos tornamos. É muito duro saber o quanto as religiões já interferiram e fizeram mal com seus preceitos em nome de Deus e tratando o igual a nada, revoltante ver isso, mas importante não esquecer.
De modo geral, gostei muito mais do Spin-off de Tom Sawyer, que é as Aventuras de Huckleberry Finn, do que o original. Huck é um menino doce, que todos rejeitam pelo pai bêbado, malandro e mal que tem. Sem oportunidades, ele se vira como pode e se torna amigo de um negro por não ser culto o suficiente. Muito inteligente, audacioso e humano, ele parte pelo rio Mississipi, onde vive muitas aventuras e conhece o pior das pessoas em diferentes situações, como a família do fazendeiro que vive em pé de guerra com a outra poderosa família da região (que se matam a troco de nada) e os dois "nobres": o rei e o duque, pilantras da pior espécie. Se qualquer pessoa estivesse na pele de Huck, com certeza veria que existe muito mais dignidade no negro Jim do que em qualquer pessoa dita civilizada e religiosa.
O livro seguiu um ótimo fluxo até a chegada de Tom. Foi bem empolgante acompanhar as fugas e estratagemas do garoto Finn, que se considerava a pior espécie de ser humano, enquanto ele sempre foi bom, mesmo com tudo e todos contra ele. Foi lindo de ver o reencontro dos piratas de Saint Petesburg, se associando a mais uma aventura. A única coisa que me deixou desgostosa foi a libertação do Jim não ser de livre e espontânea vontade, assim como a facilidade de se livrar do velho Finn. Exceto esses pontos e a raiva que senti das invenções escabrosas do Tom, foi esplêndido ter dado uma chance a essa pérola da literatura.
Indico a leitura para própria reflexão, mas acho que não tem problema algum se sentir ofendido e pensar que se trata de uma obra que envelheceu mal. A literatura é viva, eficaz e assume seu próprio curso rio abaixo, mas pode secar ou se deparar com um obstáculo intransponível. Vale muito a pena ler e conhecer, por isso, deixo a dica e espero que mais pessoas conheçam mais sobre Huck e Tom.