Albarus Andreos 04/09/2013O Caminho da GuerraGêngis Khan enviou seus generais para os quatro cantos da Ásia. De norte a sul, de oeste a leste, hordas mongóis assolam terras e cidades, matando, estuprando e fazendo escravos; aprendendo costumes, conhecendo novas táticas de combate e armamento e, acima de tudo, se divertindo com cada choro e cada cabana incendiada. Em os Ossos das Colinas, terceiro volume da saga O Conquistador (Editora Record, 2010), cada um dos filhos do grande cã é agora um general; acompanhados por outros generais, preceptores experientes na guerra, treinam dia após dia a lida de um conquistador: como fazer do genocídio uma arte. Então, três anos depois, cada um deles recebe uma carta de Gêngis ordenando a volta. Era hora de se unirem para formar a grande Horda e serem de novo liderados pelo Senhor do Mar de Capim. O Oriente se tornava pequeno demais para os mongóis e os massacres costumeiros deveriam esperar. Todos sabiam que uma grande Guerra viria, mais além, no oeste. O mundo árabe: o novo alvo.
Não que isso tenha sido simples ou fácil de lidar. Cada um dos filhos-generais, depois de tanto tempo, já sente o prazer de cuidar de seus homens e vencer as próprias batalhas. Tornaram-se homens duros e obstinados como o pai. No oriente, o império jin estava a beira do colapso. Era questão de tempo para que toda a China caísse sob os mongóis, mas as ordens de Gêngis eram claras; deveriam voltar. No norte, os russos, com suas armaduras pesadas e cavalos cobertos de aço caem sob as armaduras mais leves e a guerra ao estilo mongol, feita das costas dos cavalos. Para os mongóis, que com seus arcos compostos sentam-se invertidos nas selas e deixam os perseguidores engolirem as flechas de peito aberto, vencer é sempre o único final possível. No sul, a Índia ainda se preserva incólume, mas é no oeste que parece haver algo errado.
Gêngis, em alguma medida, está aprendendo a necessidade de haver cidades (explico: o povo mongol sempre viveu nas planícies, em cabanas chamadas iurtas, feitas de feltro de pelos de cabra e peles). É claro que não é tão divertido quanto queimá-las e espetar seus habitantes com flechas, mas as maravilhas que vê acabam por abalar suas convicções a ponto de ele pensar que seria bom ver o que conquistou permanecer após sua morte na forma de cidades muradas e altivas. Se no início era só cavalgar e carregar tudo nos lombos dos cavalos, a ideia de ter uma capital para o que conquistou começa a ser atraente. E quem herdará tudo?
Jochi, feroz, correto e destemido, o mais velho, não é o favorito de Gêngis. Paira sobre ele a suspeita de não ser filho legítimo, por causa de um estupro que sua primeira mulher sofreu. Já Chagatai, o segundo, é invejoso, tão cruel quanto o pai, mas igualmente capaz e destemido, contudo não cansa de criar armadilhas para o irmão mais velho em quem vê uma ameaça para sua ambição desmedida de se tornar cã. Sua invídia invariavelmente lhe arruma confusões e Gêngis, invariavelmente, releva suas piores consequências, o que enfurece mais e mais Jochi e começa a causar desconforto dentre os próprios generais mongóis e mesmo dentre as tropas. Se Chagatai é um problema para o povo, Jochi, por causa disso, é um problema para o próprio Gêngis Khan. Há ainda Ogedai, o terceiro filho, um jovem alto e forte como o pai, mas ainda imaturo e ávido demais para mostrar sua força. Nem de longe acha que pode se tornar o grande cã, sucedendo o pai. O caçula é Tolui, mas este está ainda preocupado demais brigando com os meninos de sua idade dentre as iurtas, fazendo guerra de lama.
O motivo de Gêngis se voltar para o oeste e deixar os jin em paz por algum tempo, é a ofensa que nem de longe pode ser relevada, cometida pelos árabes de Khwarezm. Ao receber uma comitiva diplomática mongol, enviada com o intuito de realizar comércio, simplesmente mostram sua inclinação à amizade mandando de volta ao cã as cabeças decepadas dos emissários e não há necessidade de dizer mais nada. Assim, oitenta mil guerreiros mongóis e mais uma infinidade de mulheres, crianças e rebanhos mudam para as áreas desérticas e quentes ao oeste, atrás de uma vingança que Gêngis Khan cobraria com juros altíssimos. O que um mongol faz é a guerra. Dar ainda um motivo de tal magnitude é o mesmo que besuntar-se com mel e correr para as abelhas.
Gêngis se defronta então com as muralhas de Bukhara e Samarkand, as mais importantes cidades do reino árabe, após ir matando e saqueando o que lhe aparece pela frente. Como fizera ante as cidades jin, manda que montem as catapultas para submeter as muralhas e espera que os que vivem lá dentro morram de fome ou se rendam, para morrerem dignamente pela espada. Mas os exércitos do xá marcham do sul para auxiliar sua cidade: duzentos mil lanceiros a pé, elefantes e a cavalaria pesada formada pelos mais queridos filhos da nobreza muçulmana. É hora de cada um dos generais mongóis mostrar de que tipo de material são feitos seus guerreiros.
O grande exército árabe mancha para libertar sua cidade. Nada pode obstruir seu avanço e os filhos do deserto querem deixar isso claro aos invasores. Nada que fizerem vai fazer a grande horda árabe desviar-se de seu caminho abençoado por Alá. Assim, as batalhas são brilhantemente descritas por Conn Iggulden. Vemos as táticas de cada um dos generais sob o comando do grande cã, solapando as beiradas do grande contingente que se move morosamente. Vemos a arrogância árabe ser fatiada pouco a pouco enquanto acha que pode mandar seus cavaleiros contra os velozes arqueiros montados mongóis. Vemos como aos poucos Gêngis Khan mostra o quê um mongol faz diante da maior das agruras da guerra. Cada soldado obedece e serve. Cada flecha é disparada de arcos treinados desde quando os meninos mal sabiam falar e cada homem aprende a montar antes mesmo de saber andar. O resultado é espantoso.
É um momento de absoluto terror quando as famílias mongóis acampadas são atacadas pelo séquito do xá em fuga, sem os guerreiros do cã para protege-las; vemos que mesmo uma criança ou uma mulher mongol não são crianças e mulheres comuns, mas guerreiros, tais quais seus homens. Mas as cimitarras árabes são de aço e o ódio comanda os braços morenos dos árabes.
Se há uma falha no texto de Iggulden, na minha opinião, nesse mar de parágrafos e páginas deslumbrantemente escritas, está no fato de que esse ataque às famílias, quando ocorre, não é lá muito convenientemente abordado pelo escritor. Seria de se esperar que o massacre atingisse a alma de qualquer povo. Isso poderia abalá-los fundo e embora se diga que só tornou os homens mais ferozes e as flechas mais certeiras ainda, seria de se esperar que o abalo psicológico até mesmo quanto ao futuro, fosse melhor apresentado. O povo mongol, quando viu-se sem metade de suas fêmeas e crias, deveria ter-se tornado mais sombrio e maligno. Afinal, parte da nação morrera ali, sem ajuda, a parte mais tenra e alegre, o próprio amanhã encarnado. A lógica diz que o crescimento da nação seria afligido despois dessa catástrofe, mas a narrativa de Iggulden passa por essa tragédia sem maiores aprofundamentos, detendo-se nas batalhas repletas de sangue, fezes e tripas expostas.
Depois da ruína árabe, acompanhamos a fuga do príncipe Jelaudin, filho do xá derrotado e doente, fugindo com seu pai e seus irmãos da perseguição. Vemos como vai arregimentando outros compatriotas e fiéis muçulmanos pelo caminho até deparar-se com os califas indianos do sul, subitamente convertidos ao corão que, finalmente, lhe rendem as homenagens devidas e lhe cedem homens e armas. Jelaudin se torna um homem santo, um enviado de Deus para convocar a Jihad sobe os infiéis. Está pronto para tentar uma vingança e extirpar os invasores de suas belas terras. Com o auxílio dos Hassassin, uma seita terrível de homens que servem à morte, faz de tudo para deter Gêngis Khan. Assistir aos esforços, as frustrações e as vitórias de Jelaudin é um grande brinde desse livro.
Dá para ver o quanto Conn Iggulden se baseia em relatos históricos reais para descrever suas passagens. Contudo, parece faltar em alguns momentos uma adaptação literária mais condizente com o restante da obra. A passagem em que Jelaudin e seu exército são emboscados no rio, onde as barcaças de transporte prometidas não estão disponíveis, mereceria um romanceamento melhor, uma explicação inventada por Iggulden para melhor digerirmos o que nem mesmo a história real parece ter explicado. É também papel do romancista criar literatura sobre o que não está nos anais históricos, senão a ficção histórica se torna apenas história. É um momento arrebatador que poderia ser melhor aproveitado.
Outro nome digno de nota é o de Tsubodai, o mais competente e respeitado general mongol. O estrategista que consegue sobrepujar os exércitos do xá. Como o mais fiel dos servidores de Gêngis Khan e aquele que fora o mais íntimo de Jochi, o filho revoltoso do grande cã, é quem recebe a missão mais difícil de todas. Vemos o dilema do general que cavalga com seu tuman para as terras ancestrais, milhares de quilômetros além, para cumprir uma amarga e deplorável empreitada. Vemos os momentos dramáticos desse general ao se defrontar com aquele que lhe fora o mais querido dos companheiros e seu antigo pupilo. A ele dá sua palavra e a ele tem que faltar com ela.
Os Ossos das Colinas é tão bom quanto os outros livros da série O Conquistador até aqui. No final, temos a escolha do sucessor de Gêngis Khan e temos o derradeiro momento de um dos mais poderosos homens que já caminharam sobre a terra. Um líder feroz, pai de um nação, um homem marcado pela barbárie. Dramático, forte e terrivelmente impiedoso; o homem que um dia assombrou o mundo com sua implacável crueldade, que formou um país a partir de tribos nômades, unidas pela sede de vida e de sangue, e que deixou tanto chineses quanto árabes de joelhos perante a história. Ótimo livro!
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