Tarcisio 17/11/2015
“Se a razão não quer se submeter à lei que ela se dá a si própria, tem de se curvar ao jugo das leis que um outro lhe dá; pois sem alguma lei nada, nem mesmo o maior absurdo, pode exercer-se por muito tempo” Immanuel Kant.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret, 2008, 96 p.
TARCISIO PADILHA
Acadêmico do Centro Universitário – Católica de Santa Catarina.
Immanuel Kant (1724-1804) é um dos mais importantes filósofos modernos, promoveu modificações radicais no modo de pensar sobre a filosofia, fugindo do empirismo predominante até então, representado pela obra de David Hume. É responsável por inaugurar uma nova concepção filosófica, baseada na razão. A obra que apresentamos Fundamentação da Metafísica dos Costumes é considerada por muitos filósofos como uma das mais importantes sobre a moral.
A presente obra é composta por um prefácio e por três seções. O prefácio apresenta de maneira geral a temática. As seções desenvolvem um escalonamento, do conhecimento moral da razão comum para o conhecimento filosófico; da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes; por fim, da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura.
No prefácio, Kant (2008, p. 13-18), descreve as divisões da filosofia grega - física, ética e lógica – bem com seus respectivos princípios - conhecimento racional da matéria segundo leis da natureza; conhecimento material dos objetos submetidos às leis da liberdade; conhecimento formal do entendimento, da razão em si e das regras universais do pensamento, sem distinguir objetos. Sendo que a lógica não tem parte empírica, enquanto que a ética determina as leis da vontade humana é afetada pela natureza. Diferente da filosofia empírica, a filosofia pura apóia-se em princípios a priori. A ética tem na antropologia prática sua parte empírica e na moral a parte racional. Portanto, a ética deve separar os elementos empíricos do racional e descobrir as fontes a priori de seus princípios.
Na filosofia moral, para uma lei valer moralmente como obrigação, ela deve ter em si uma necessidade absoluta. Os princípios baseados na experiência não podem ser considerados leis morais, mas apenas regras práticas. A filosofia moral não dependendo em nada do conhecimento do homem fornece as leis a priori. Porém, as inclinações impedem a esse de aplicar uma razão pura prática que ele mesmo concebe. Assim, a metafísica dos costumes é necessária para fornecer os princípios a priori a fim de evitar as perversões dos costumes. O que é bom moralmente está conforme à lei moral e se cumpre por amor à lei. Assim, a Fundamentação é uma preparação para a Metafísica dos Costumes.
O autor na primeira seção partindo do conhecimento moral da razão vulgar pretende chegar ao conhecimento filosófico. Para isso, inicia definindo alguns conceitos como boa vontade, única “coisa” considerada boa sem limitação. As demais constituições do homem só são boas se a vontade também for. Até mesmo a felicidade é corrigida por uma boa vontade, a qual nos torna de fato dignos da felicidade. Não é boa pelo que faz, antes é pelo que é em si mesma (KANT, 2008, p. 21-24)
Já a razão é a faculdade prática que influencia a vontade, não deixando prevalecer os instintos e inclinações, mas antes deve produzir uma vontade boa em si e não boa como meio para atingir fins diversos. Outro conceito é o de dever que contém em si o de boa vontade. Assim, uma ação só será moral quando essa ação for praticada por dever e não apenas conforme o dever. Exemplifica:
Os homens conservam a sua vida conforme o dever, sem dúvida, mas não por dever. Em contraposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver, quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva, contudo, a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral (KANT, 2008, p. 25).
Sendo assim, a vontade boa se identifica com a vontade de agir somente por dever, em contrapartida praticar algo por inclinação, mesmo conforme o dever, não é um ato moral. Logo, o “dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei” que “manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações” (KANT, 2008, p. 28). Portanto, para que uma ação seja moralmente boa: “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (KANT, 2008, p. 28).
Por fim, Kant (2008, p. 31-33) afirma que “o conhecimento do que cada homem deve fazer, e por conseguinte saber, é algo que compete a cada homem, mesmo o mais vulgar”, mas só adquire a capacidade de julgar se elimina todos os motivos sensíveis das leis práticas. Assim, é necessário passar do conhecimento vulgar à filosofia prática que ajudará na dialética entre as máximas e as inclinações.
Kant (2008, p. 37-42), na segunda seção, buscando a transição da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes, defende que o conceito de dever apesar de ser tirado do uso vulgar da razão prática não é um conceito empírico. O dever em geral reside na idéia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori e não pela experiência (a posteriore). Assim, “todos os conceitos morais têm a sua sede e origem a priori na razão” e “devem valer para todo o ser racional em geral”.
Sendo que a vontade não é em si totalmente conforme a razão, “está sujeita a condições subjetivas”. Por isso, a determinação da vontade é uma obrigação, segundo leis objetivas. Um princípio objetivo que obriga a vontade representa o mandamento da razão. Surge daí, o imperativo que é a fórmula do mandamento. “Todos imperativos exprimem-se pelo verbo dever”. Bom é tudo o que determina objetivamente a vontade por meio de representações da razão e por princípios válidos para todo ser racional. Os imperativos exprimem a relação entre leis objetivas do querer e a imperfeição subjetiva do ser racional e da vontade humana (KANT, 2008, 43-44).
Os imperativos podem ser divididos em hipotéticos e categóricos. Os hipotéticos “representam a necessidade prática de uma ação como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer”. Já os categóricos representam “uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”. O imperativo diz qual ação é boa e representa a regra prática em relação com uma vontade. Assim, o imperativo hipotético visa a pratica de ações em favor da felicidade, enquanto o imperativo categórico “não se relaciona com a matéria da ação e o seu fim, mas com a forma e o princípio do qual a ação deriva”, sendo assim, um imperativo da moralidade, pertencente aos costumes em geral e busca sua possibilidade a priori, fora da experiência (KANT, 2008, 45-51). Portanto, a partir da universalidade da lei, que constitui propriamente a natureza, ou realidade das coisas, daí que o imperativo universal do dever pode se exprimir assim: "age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, pela vontade tua, em lei universal da natureza" (KANT, 2008, 52).
Para Kant, “o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade” e o desejo universal de todos os seres racionais deve ser libertar-se de suas inclinações. A partir disso, define a terceira forma do imperativo categórico: "age de tal maneira que a humanidade em qualquer pessoa seja usada como fim e nunca como meio" (KANT, 2008, 58-59).
A vontade é legisladora de si mesma e por isso está submetida à lei da qual é autora. Ela não depende de um interesse qualquer. É, por isso, o único imperativo possível como incondicional. Assim, para Kant (2008, p. 63):
“O conceito segundo o qual todo ser racional deve se considerar, por todas as máximas de sua vontade, o legislador universal, para julgar a si mesmo e às suas ações desse ponto de vista, conduz a um outro conceito bastante fecundo que se lhe relaciona e que é o de reino dos fins”.
Entende por reino “a ligação sistemática de vários seres racionais por meio de leis comuns”. Essa relação é possível devido à autonomia da vontade, que é a parte da vontade que constitui uma ordem a si mesma. E o princípio da autonomia é que as suas máximas venham a valer para todos, fundamento da dignidade da natureza humana e racional. Assim, “a moralidade consiste pois na relação de toda a ação com a legislação, através da qual somente se torna possível um reino dos fins”. E, a dignidade do ser humano está na obediência da lei que ele mesmo “simultaneamente se dá a si mesmo” (KANT, 2008, p. 64).
Distingue autonomia da vontade de heteronomia da vontade. Aquela deve ser reconhecida a priori pela razão pura prática e, sendo assim, é o único princípio da moral, de onde procede os imperativos categóricos; essa é a legislação universal baseada na natureza dos objetos, que só permite imperativos hipotéticos, ou seja, o agir orientado pelo querer outra coisa, constituindo assim princípios ilegítimos da moralidade (KANT, 2008, p. 70-71).
Encerra essa sessão, classificando os princípios possíveis da moralidade segundo o suposto conceito fundamental de heteronomia, a saber: são princípios empíricos quando derivam do conceito de felicidade e não servem para fundar leis morais; ou, são princípios racionais se derivam da perfeição como possível ou independente da nossa (como a vontade de Deus). Para o autor, o princípio mais condenável é o da felicidade própria que:
Atribui à moralidade móbiles que antes a minam e destroem toda a sua sublimidade, juntando na mesma classe os motivos que levam à virtude e os que levam ao vício, e ensinando somente a fazer melhor o cálculo, mas apagando totalmente a diferença específica entre virtude e vício (KANT, 2008, p. 72).
A última sessão é a tentativa da transição da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática pura. Para isso, começa definindo (de forma negativa) o conceito de liberdade como chave da explicação da autonomia da vontade: a liberdade é a propriedade da vontade, enquanto causalidade dos seres racionais. Sendo a vontade uma espécie de destino dos seres racionais, esses se tornam livres quando escolhem a lei moral que irá reger as suas vidas. Deve-se pressupor a liberdade como propriedade da vontade em todos os seres racionais. Mas, a razão prática pura não pode deduzir o conceito de liberdade e a possibilidade de um imperativo categórico (KANT, 2008, p. 79-80).
Por isso, a liberdade precisa ser demonstrada a priori como pertencente à atividade de seres racionais em geral e dotados de vontade. No sentido prático, é livre todo aquele que só age sob a idéia de liberdade. Porém, tanto liberdade e legislação da vontade são autônomas e uma não pode explicar a outra (KANT, 2008, p. 80-81).
Para Kant (2008, p. 84) o homem não tem um conceito a priori de si, visto que não se cria a si mesmo. Recebe o conhecimento a partir das experiências, mas também é dotado da razão pura. Por isso, o homem é ser do mundo sensível e do mundo inteligível. Assim, a razão é a faculdade que o distingue em si das outras coisas. Sendo que esta está acima do entendimento, que é passivo aos sentidos. O homem como ser racional deve pertencer ao mundo inteligível. Por isso, ele é livre, quando ascende ao mundo inteligível e à moralidade. Mas, quando obrigado, pertence ao mundo sensível, ainda que ao mesmo tempo pertença ao inteligível (KANT, 2008, p. 82-86).
Seguindo o pensamento platônico, Kant (2008, p. 86-87) afirma que se o mundo inteligível é o fundamento do mundo sensível, “terei de considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim e as ações conforme esses princípios são deveres”. E “esse dever categórico representa uma proposição sintética a priori”. O indivíduo, tendo a consciência de possuir uma vontade boa que constitui a lei do mundo inteligível, vê o dever moral como um querer próprio necessário na medida em que pertencente também ao mundo sensível.
A liberdade da vontade e as leis naturais são conceitos de necessidade, ou seja, de conhecimento a priori. Mas, “a liberdade é só uma ideia da razão cuja realidade objetiva é duvidosa”, enquanto a natureza “é um conceito do entendimento que demonstra [...] a sua realidade por exemplos da experiência”. Aparenta assim uma contradição, mas não pode havê-la, pois não se pode renunciar a esses conceitos, mesmo que a razão não possa explicar a possibilidade da liberdade. Enfim, essa é válida, somente como pressuposto necessário da razão e da vontade (KANT, 2008, p. 88-90). Assim:
A impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da vontade é idêntica à impossibilidade de descobrir e tornar concebível um interesse que o homem possa tomar pelas leis morais; e, no entanto, é um fato que ele toma realmente interesse por elas, cujo fundamento em nós é o que chamamos sentimento moral, sentimento que alguns têm falsamente apresentado como padrão do nosso juízo moral, quando é certo que ele deve ser considerado antes como o efeito subjetivo que a lei exerce sobre a vontade e do qual só a razão fornece os princípios objetivos (KANT, 2008, p. 92).
Portanto, a liberdade é o pressuposto para a validade do imperativo categórico e da lei moral. No entanto, a razão humana é incapaz de explicar como uma razão pura possa ser prática (KANT, 2008, p. 93-94).
Conclui que o uso prático da razão conduz à necessidade absoluta das leis das ações de um ser racional. O incondicional necessário, a liberdade, deve ser aceito como pressuposto. Caracterizando, assim, como um defeito da razão humana em geral, não conceber uma lei prática incondicionada como necessidade absoluta (KANT, 2008, p. 95-96).
REFERÊNCIAS
BARROS, Everton Oliveira. Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Immanuel Kant). 2009. Disponível em: < http://filopensante.blogspot.com.br/2009/07/
fundamentacao-da-metafisica-dos.html>. Acesso em: 20 nov. 2014.
ÉTICA MODERNA. Resumo sistemático de KANT: Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Disponível em: < http://www.discursus.xpg.com.br/textos/fumetcos.html>. Acesso em: 14 nov. 2014.
JÚNIOR, Gilberto Miranda. Fundamentação da Metafísica dos Costumes: resenha. 2009. Disponível em: . Acesso em: 18 nov. 2014.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Martin Claret, 2008.
MARTINS, Reno Sampaio Mesquita. Um estudo sobre a fundamentação da metafísica dos costumes à luz de Immanuel Kant. 2010. Disponível em:
< http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=4099>. Acesso em: 18 nov. 2014.
PAGOTTOEUZEBIO, Marcos Sidnei. Considerações acerca da Fundamentação da Metafísica dos Costumes de I. Kant: Liberdade, Dever e Moralidade. 2007. Disponível em: < www.hottopos.com/notand14/marcos.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2014.
VALADÃO, Suelem Cabral. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Disponível em: < http://www.coladaweb.com/filosofia/fundamentos-da-metafisica-dos-costumes>. Acesso em: 20 nov. 2014.